Churrasco no fogão em grelha cerâmica japonesa (foto: Marcos Nogueira / Cozinha Bruta)

Os cadernos de receitas não eram território masculino. Formavam uma rede social feminina, passados de mãe para filha, recheados de vozes de irmãs, vizinhas, primas. Existiam exceções, como o caderno de uma bisavô padeiro, e existiam aparições esporádicas, como o prato que o pai preparava em ocasiões especiais. Mas em geral o “bolo do vô” era o bolo que a vó fazia para agradar o vô, e não o bolo que o vô preparava. Se bobear, a vó tinha aprendido o bolo com a sogra, para agradar o vô.

Mudamos. Ou: estamos mudando. Hoje há menos cadernos de receitas — o delivery e o Google estão aí para socorrer a refeição caseira ou pelo menos para nos confortar dando essa impressão. Há também mais homens na cozinha. E, se podemos falar de uma comida de mãe e de uma comida de vó, procurando um denominador comum para sabores que nos moldam, podemos também falar de uma comida de pai ou de uma comida de vô.

Inevitável começar com churrasco. Pois é assim que lembro do meu pai cozinhando quando eu era menina: ele e os vizinhos no pátio da vila onde morávamos, uma churrasqueira acesa à noite, um peixe na grelha. Mudamos de casa e de cidade, e hoje é assim que ele nos recebe quando o visito: preparando camarões, peixes, com sorte lagostas, para fascínio do neto, que já associa o avô a mar e pesca. (Uma receita do meu pai no caderno da minha mãe: camarão empanado. A testar.)

Verdade que não há novidade em homem assando alimentos diretamente no fogo, ao ar livre, cercado pela turma. Novo, relativamente, é ele assumir o fogão doméstico, não a bancada do restaurante ou a fogueira do acampamento.  “A atmosfera que sempre predominou, e ainda predomina, entre os que cozinham no fogo é heroica, masculina, teatral, arrogante, avessa a qualquer ironia e ligeiramente (às vezes nem tão ligeiramente) ridícula” — quem está dizendo não sou eu, é o jornalista americano Michael Pollan, no livro Cozinhar: uma história natural da transformação.

Aqui em casa não podemos ter churrasqueira. Moramos em apartamento antigo, sem varanda gourmet, esse sonho caro à classe média urbana. Mesmo assim, meu marido, Marcos Nogueira, autor do blog Cozinha Bruta, me mostra quase todos os dias uma cozinha de pai que não se restringe ao churrasco, mas exala uma vontade de retorno ao fogo —  e é tão diferente da minha cozinha quanto a canja é da picanha grelhada.

Explico. Eu disse que não temos churrasqueira e que a comida do Marcos não é só churrasco. Mas isso não o impede de fazê-lo: sobre o fogão, em uma frigideira de ferro cheia de brasas cobertas por uma grade; ou em uma grelha cerâmica japonesa (na foto que abre este post, tirada do Instagram dele)Outras preparações também envolvem pirotecnia. A pizza, por exemplo, é chamuscada com maçarico. Por quê? “Para obter um resultado impossível com os equipamentos normais de uma cozinha doméstica”, ele escreve, e acho que há aí outra chave do que nos diferencia.

Enquanto minha comida de mãe quer ser feita com o que há à mão, do jeito mais simples e saboroso possível, ele se diverte testando técnicas (carne cozida na máquina de lavar louça, que tal?) e adquirindo traquitanas que vão do termocirculador (genial para fazer iogurte, confesso) à guilhotina francesa para fatiar frios. O resultado, felizmente, compensa o abarrotamento dos armários.

Isso é na minha casa. Talvez o que você conheça como cozinha de pai seja outra coisa. Talvez mais algumas gerações dividindo as tarefas domésticas apaguem diferenças entre cozinha de mãe e cozinha de pai, cozinha de vó e cozinha de vô. O que importa mesmo é continuarmos capazes de nos juntar para criar boas memórias à mesa. E ajudar pequenos cozinheiros como meu filho a vestir o avental e cozinhar suas próprias histórias.

Pedro de avental de cozinha

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