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Menu do cerco a Paris — e as lições de Escoffier para tempos de escassez

Menu do restaurante Voisin (reprodução do livro Escoffier - O Rei dos Chefs)

Para quem temeu pela própria despensa durante a paralisação dos caminhoneiros, que tal esse menu servido por um restaurante no 99º dia de cerco a Paris em 1870?

O cardápio está na biografia Escoffier – O Rei dos Chefs, de Kenneth James (o livro não é novo, mas li agora e recomendo). Foi servido no Natal pelo restaurante Voisin, quando a capital francesa estava sitiada pelos alemães durante a Guerra Franco-Prussiana. O biografado, Auguste Escoffier, não trabalhava no Voisin nem estava em Paris nessa época, mas James usa o menu para contextualizar a situação dos restaurantes no período do cerco (e porque deve ter sido irresistível para o autor contar a história desse menu).

Na cidade isolada por meses, faltavam mantimentos para todos, inclusive para os bichos do zoológico, que resolveu vendê-los para restaurantes. Surgiram então pratos como tromba de elefante ao molho caçador e bife de urso, além do menu do Voisin.

Reprodução de menu do Voisin

Exótico, e um luxo para poucos. Nas ruas, cachorros, gatos e ratos eram vendidos como comida — alguns deles, aliás, entravam no prato do Voisin chamado Le chat flanqué de rats (gato acompanhado de ratos). Criatividade e humor negro à mesa não pareciam faltar.

Escoffier não ficou preso no cerco porque antes tinha sido recrutado no restaurante onde trabalhava, Le Petit Moulin Rouge. Como chef de cozinha no front, se esforçava para alimentar os oficiais do seu regimento — inicialmente com classe, depois do jeito que dava.

A seguir, lições para tempos de escassez — ou qualquer tempo — que podem ser tiradas da biografia de Escoffier, considerado o primeiro dos grandes chefs modernos.

  • Poupe a bebida – mas lembre-se de que amanhã você talvez não esteja vivo para tomar o que deixou de aproveitar hoje. Um exemplo de menu servido por ele na guerra:
    Sardinhas ao azeite
    Salsicha vienense
    Ovos cozidos
    Rosbife assado ao ponto
    Salada de batatas
    Café
    Fine champagne
  • Quem conserva (quase) sempre tem: atum e sardinha em lata compuseram várias refeições durante o conflito.  E são uma saída de emergência digna para muitas refeições de última hora em tempos de paz (podem entrar em uma torta que eu adoro).
  • Batata e cebola duram e podem ser combinadas de mil maneiras reconfortantes. Pense em sopa de cebola, salada de batata e tudo que pode ganhar mais sustança e sabor com esses ingredientes. Ovos também são versáteis e fáceis de armazenar.
  • Carne é pra render. Nas mãos de Escoffier, um coelho picadinho, com bastante cebola e acompanhado de batata-frita, serviu um batalhão inteiro (quer dizer, pelo menos os oficiais de um regimento). De um porco, ele fez um patê que levava do pernil à pele. E por aí vai.
  • A carne de ontem também é um prato que se come frio — pense em uma salada de carne fatiada e bem temperada com ervas.
  • Sobras são uma possibilidade de exercitar a criatividade, “Atingi níveis nunca antes alcançados em se tratando de aproveitar restos. Meus colegas ficavam espantados”, disse Escoffier sobre seu período como chef no exército. “Almoçávamos basicamente o mesmo que os oficiais, por exemplo, soberbos gratins de restos de aves, com macarrão picado e ligado com algumas colheradas de béchamel.”
  • Geleia é mais do que uma pastinha doce para passar na torrada. Na falta de açúcar, Escoffier adoçava sobremesas com a geleia de mirabelles que tinham no estoque. Como no seu arroz à moda de Lorraine: camadas de arroz cozido no leite de cabra entremeadas por geleia, cobertas por compota de maçã e salpicadas de farelos de biscoito militar. Para acompanhar, kirsch (destilado de cereja).

Para cozinhar mais:

Em busca do verdadeiro pão de mandioca

Pão de mandioca (foto: O Caderno de Receitas)

A pedido de um leitor, um teste do livro Básico – Enciclopédia de Receitas do Brasil, de Ana Luiza Trajano

Um leitor pediu uma receita de pão de mandioca. E um pedido de leitor é sempre uma ótima desculpa para vasculhar os cadernos de receitas em busca de novos pratos para testar. Mas acontece que desta vez não encontrei nenhuma receita anotada. Nadinha. Fui então buscar na minha pequena biblioteca caseira. Procurei no Dona Benta – Comer Bem: estava lá. Lembrei então do Básico – Enciclopédia de Receitas do Brasil. Escrito pela chef Ana Luiza Trajano (de quem vamos falar mais muito em breve), ele dá uma boa atualizada no receituário das casas do Brasil — não à toa, o sociólogo Carlos Alberto Dória compara o novo livro com o da Dona Benta, lançado nos anos 1940.

Escolhi fazer a receita da Ana Luiza, e não me arrependi. O resultado lembrou os pães de minuto dos cadernos da minha família, aqui enriquecidos pelo sabor da mandioca. Não sei se vai atender a expectativa do leitor, que procurava “o verdadeiro pão de mandioca, coisa que não encontramos hoje”. Mas espero ter contribuído nessa busca.

Abaixo, a receita do Básico – Enciclopédia de Receitas do Brasil, do jeito que eu preparei.

Ingredientes*
150 gramas de mandioca
250 gramas de farinha de trigo
1 ovo, mais uma gema para pincelar os pães
1 colher (chá) de sal
10 gramas de fermento biológico seco instantâneo (o livro falava em fermento biológico, mas adaptei com esse, que era o que eu tinha)
½ colher (sopa) de manteiga
1 colher (sobremesa) de açúcar
¼ xícara de óleo de milho
* Procurei usar metade das quantidades da receita do livro, para fazer 10 pãezinhos.

Modo de preparo
Cozinhei a mandioca em pedaços até que ficasse bem macia. Tirei os fios duros do miolo e a amassei ainda quente em uma tigela.

Sobre a mandioca, coloquei parte da farinha, o ovo e o sal no centro; a manteiga e o açúcar ficaram ao redor. Despejei o óleo e fui misturando tudo e acrescentando o restante da farinha até chegar a uma massa quase lisa — eu ainda podia sentir uns pedacinhos de mandioca.

Deixei que a massa crescesse por meia hora.

Moldei 10 bolinhas e as coloquei em uma assadeira untada e enfarinhada.

Deixei que a massa crescesse mais meia hora. Pincelei gema na parte superior de cada bolinha.

Assei em forno pré-aquecido a 180º C até os pães ficarem levemente dourados.

Para cozinhar mais:

Cuscuz à paulista – uma homenagem a Benê Ricardo

Cuscuz à paulista feito a partir de receita da chef Benê Ricardo (foto: O Caderno de Receitas)

A chef Benê Ricardo já deveria ter aparecido neste blog antes. Muito antes. Foi a primeira mulher a receber um diploma na escola de gastronomia do Senac, aprendeu a cozinhar com a avó quituteira, dominava os preparos brasileiros tradicionais e pratos internacionais. Com um chucrute, leio na Folha, impressionou o general Ernesto Geisel e, consequentemente, conseguiu uma vaga no clube do bolinha que era o curso de formação profissional para cozinheiro. Infelizmente foi só agora, com a morte de Benê, que eu me dei conta da falta que ela fazia aqui.

Agora, que já não podemos conversar, que não posso mais ouvir suas histórias sobre a infância em São José do Mato Dentro (MG), os ensinamentos da avó ou a chegada a São Paulo, aos 17 anos. Talvez falássemos sobre o período em que Benê trabalhou para a família do presidente da multinacional Atlas Copco (meu pai também trabalhou para a empresa, sabia? Lembro muito do Gol azul e branco que ele usava no serviço). Outra coincidência: Benê e meu avô foram funcionários do empresário Henry Maksoud; ela, na cozinha do Maksoud Plaza, hotel de lobby gigante que me dava vertigem na infância e até hoje me impressiona; meu avô, na firma de engenharia Hidroservice. Por acaso se conheceram? Dificilmente, mas será?

Na falta de uma conversa com Benê, fui atrás de suas receitas. Encontrei no livro Culinária da Benê – Dicas e Segredinhos para um Dia-a-Dia mais Prático, Econômico e Saboroso. De fato, há ali um bocado de preparos saborosos.Deu vontade de cozinhar o arroz da avó Eugênia, que leva um copo de cachaça, a coxinha-creme de asa de frango, o arroz-de-forno… Mas comecei com o cuscuz à paulista, que adoro e estava havia tempos ensaiando fazer em casa.

Ficou uma delícia. Obrigada, chef Benê.

A chef Benê Ricardo (foto: reprodução)

Cuscuz à paulista
(adaptado a partir da receita do livro Culinária da Benê)

Rendimento: 4 a 5 porções

Ingredientes
3/4 de xícara de farinha de milho flocada
1/4 de xícara de farinha de mandioca crua
1 xícara de azeite (acho que dá próxima vez vou tentar fazer com um pouco menos)
1/2 cebola picada
1 dente de alho picados
¼ de pimentão verde em cubinhos
¼ de pimentão vermelho em cubinhos
75 gramas de palmito
1 xícara de passata de tomate
250 ml de caldo de frango ou peixe
50 gramas de ervilhas
25 gramas de azeitonas verdes picadas
125 gramas de camarões limpos e cozidos (usei os congelados, porque estamos em época de defeso da pesca de camarões)
3 colheres (sopa) de salsinha picada
3 colheres (sopa) de cebolinha picada
1 colher (sopa) de coentro picado
Sal
Pimenta-do-reino
1 ovo cozido

Modo de preparo
Em uma peneira, esfarele os flocos grandes da farinha de milho. Misture-a com a farinha de mandioca.

Aqueça o azeite e refogue a cebola e o alho.

Acrescente os pimentões, o palmito, a passata de tomate, o caldo, as ervilhas, as azeitonas, os camarões e as ervas. Deixe ferver.

Acrescente as farinhas e mexa até fazer uma mistura macia e úmida. Acerte sal e pimenta.

Unte com azeite uma forma de pudim. Para a decoração, coloque no fundo da forma alguns camarões (estes você pode deixar com rabo) e rodelas de palmito e ovo cozido.

Despeje a massa de cuscuz na forma e pressione um pouco com uma colher.

Espere pelo menos alguns minutos antes de desenformar. Ou deixe que o cuscuz passe algumas horas na geladeira.

Vire sobre um prato e sirva.

O livro Culinária da Benê e o cuscuz à paulista (foto: O Caderno de Receitas)

Para cozinhar mais:

Torta de figos e peras caramelizados – da cozinha de Francis Mallmann para a minha

Torta de figos e peras caramelizados - O Caderno de Receitas

Meu último post foi sobre figos tostados. Alguns passos a mais e você tem esta torta. Se bem que, para falar a verdade, eu primeiro fiz a torta – e gostei tanto que, em um dia de preguiça, improvisei a sobremesa só com o recheio, variando o tempero.

O original está no livro Terra de Fogos – Minha Cozinha Irreverente, do chef argentino Francis Mallmann, bom de brasas e de papo: “Minha teoria: sempre é melhor comer frutas, mas quando escolhermos uma sobremesa, que ela seja sanguinária, criada e preparada com luxúrias”, escreve ele no capítulo de doces.

Na cozinha de Mallmann, figo se rasga com as mãos e a frigideira serve para tostar preservando a crueza da fruta. “Trata-se apenas de pousá-lo sobre o calor ardente para dar aquele perfume de queimado.”

Quando coloquei a receita em prática, juntei também peras, porque tinha em casa. Aí sobrou um pouquinho de massa e sobrou pera, então fiz também duas minitortas de pera. A versão miniatura e sem figo entrou na lancheira do meu pequeno crítico favorito, que aprovou e já pediu repeteco.

tortinha de pera - O Caderno de Receitas

Ingredientes
Para a massa:
200 gramas / 1 ½ xícara de farinha de trigo
100 gramas de manteiga
70 gramas / ½ xícara de açúcar aromatizado com baunilha (faça guardando no açucareiro uma fava de baunilha usada em outra receita) ou açúcar normal e algumas gotas de extrato de baunilha
1 ovo
1 colher (chá) de água
Para o creme de confeiteiro:
25 gramas / 2 ½ colheres de amido de milho
320 mililitros / 1 ½ xícara de leite
4 gemas
100 gramas / 2/3 xícara de açúcar aromatizado com baunilha (adaptação minha, já que Mallmann recomenda usar açúcar simples mais ½ fava de baunilha; uma terceira opção é usar açúcar simples mais algumas gotas de extrato de baunilha)
Para o recheio:
Figos e peras
1 xícara de açúcar

Modo de preparo
Da massa
Corte a manteiga em cubinhos e deixe no congelador alguns minutos para endurecer.

Com a ponta dos dedos, misture em uma tigela a farinha, o açúcar e a manteiga gelada, até fazer uma espécie de farofa. Junte ovo batido levemente com a água e, se for o caso, as gotas de extrato de baunilha.

Misture até obter uma massa lisa, então enrole em filme plástico e guarde na geladeira por no mínimo uma hora.

Enfarinhe uma superfície de trabalho e um rolo de macarrão. Abra a massa, formando um círculo um pouco maior que a fôrma, contando a altura da borda. Mallmann recomenda uma de 24 centímetros; eu tinha uma fôrma de fundo removível rasa de 22 centímetros, que deixou sobrar um pouco de massa, então usei também duas formas pequenas, de empada.

Enrole a massa no rolo, depois a desenrole sobre a fôrma. Ajuste a massa à fôrma com cuidado – mas, se por acaso rasgar um pouco, não se desespere e remende, apertando com os dedos para grudar bem. Retire os excessos da lateral, pressionando a massa sobre a borda para cortar. Use um garfo para fazer vários furinhos no fundo.

Leve a massa ao forno pré-aquecido a 180 graus Celsius até que doure (15 a 20 minutos). Espere estar fria para desenformar e transferir para o prato em que irá à mesa.

Do creme de confeiteiro
Dissolva o amido em duas colheres de sopa de leite frio. Esquente o restante do leite, sem deixar ferver, e reserve (se for usar a fava de baunilha, corte-a ao meio no sentido do comprimento, raspe as sementinhas que ficam dentro e coloque tudo para aquecer junto com o leite; se for usar o extrato de baunilha, adicione algumas gotas ao leite).

Faça uma gemada clara e lisa batendo as gemas com o açúcar. Junte o leite quente e, sem seguida, o leite com amido, e bata mais. Leve ao fogo baixo, batendo sempre, até começar a ferver. Deixe um pouco mais, só alguns minutos, depois tire do fogo. Atenção para não deixar coagular e transformar o creme em ovos mexidos.

(A etapa seguinte, segundo Mallmann, seria passar o creme em uma peneira para tirar possíveis grumos. Eu pulei esse passo e ficou tudo bem.)

Reserve o creme na geladeira, em uma tigela coberta com filme plástico. Na hora de usar, se estiver endurecido, bata para recuperar a textura.

Montagem
Espalhe creme de confeiteiro sobre a massa de torta.

Corte os talos dos figos e rasgue-os ao meio com as mãos. Corte as peras em pedaços irregulares.

Aqueça uma frigideira (eu usei uma de ferro; não use aqui as de cobertura antiaderente, porque o açúcar fica muito quente).

Coloque o açúcar na frigideira e espere derreter. Adicione o figo, com a polpa virada para baixo. Cozinhe por alguns minutos, até fique tostado na parte cortada, depois retire com uma espátula e espalhe sobre a torta. Em seguida repita os procedimentos com a pera.

Pingue sobre a torta o caramelo que sobrou na frigideira.

Para cozinhar mais:

Cozinhe sua preguiça — e um homus de lentilha vermelha — com a chef do Chou

Gabriela Barretto cultiva a simplicidade nas receitas temperadas com ervas, especiarias e fogo do livro Como Cozinhar Sua Preguiça

Gabriela Barretto e o fogo (foto: Como Cozinhar Sua Preguiça)
Gabriela em foto do livro Como Cozinhar Sua Preguiça

 

Gabriela Barretto estudou gastronomia em Paris, apaixonou-se pelo fogo em uma road trip para a Patagônia e mantém um pé bem fincado na terra do interior de São Paulo. Em seu restaurante na capital paulista, o Chou, quem se sobressai é a matéria-prima em preparações despojadas mas ponderadas. “A simplicidade muitas vezes é mais preciosa que o complicado”, diz Gabriela.

Criada na fazenda dos pais em Descalvado (SP), onde preenchia dias preguiçosos com leitura e cozinha, Gabriela estudou Letras antes de cursar a escola francesa de culinária Cordon Bleu. Hoje emprega com cuidado as palavras ao descrever criações culinárias como a batata rústica amassada com ovo, mostarda e manjerona. “Ninguém pedia quando ela se chamava salada de batata”, conta em seu livro recém-lançado, Como Cozinhar Sua Preguiça (Melhoramentos). “Mas mudamos o nome dela e agora as pessoas a adoram.” Já no caso do homus de lentilha vermelha, resolveu manter o nome mesmo depois de tomar uma bronca de um cliente que explicou que “homus” é a palavra árabe para grão-de-bico e portanto só pode designar pasta de grão-de-bico. “Nós, cozinheiros, nos apropriamos da tradição muitas vezes sem cerimônia nenhuma.”

Para ir direto à receita de homus de lentilha vermelha, clique aqui.

Com direção de arte do marido de Gabriela, Pedro Inoue, e fotos de Gui Galembeck, o livro reúne 51 receitas que pregam uma cozinha sem complicação, de poucos e bons ingredientes – “só prepare se conseguir botar as mãos em lagostins muito frescos”, diz a chef sobre um dos pratos. “Qualquer outra coisa não vale a pena”. As páginas abrem o apetite para cozinhar e comer bem, mas guardando tempo para ficar com amigos e família (Gabriela recentemente teve um bebê) – ou para fazer nada.

Conversei com a chef para a seção do Caderno de Receitas na revista L’Officiel. A seguir, publico trechos dessa entrevista e uma das receitas do livro.


Compre o livro aqui:


Como foi crescer em uma fazenda?
Meus pais tinham uma relação forte com a natureza. E, apesar de a fazenda não ser produtiva, para vender, tinha muita coisa plantada. Horta, muita fruta, abelha… . O leite vinha do vizinho. Então tive muito acesso ao produto vivo, ainda no solo, e isso ficou comigo para sempre. Gerou um respeito pelo ingrediente e vontade de trabalhar com ele no estado mais nu possível.

Beth, mãe de Gabriela, em foto tirada em Descalvado em 1983 (foto: Como Cozinhar Sua Preguiça)
Beth, mãe de Gabriela, em foto tirada em Descalvado em 1983

 

Cozinhava lá?
Como hobby. Não tinha muito o que fazer na fazenda. Era uma vida mais solitária, não tinha vizinho, outras crianças para brincar na rua, então eu tinha que me virar. Desde pequena pegava revistas da minha mãe e cozinhava.

No livro você também cita como influência uma viagem pela Argentina.
Ela teve um papel importante por causa da vivência do fogo. Eu tinha um namorado argentino e em 2004 a gente viajou para a Patagônia a partir de São Paulo, acampando no caminho. Todo dia fazia comida na fogueira, então aprendi a manusear o fogo e me surpreendi com a versatilidade dele. Não fazia só para grelhados, mas cozidos, ovo frito, linguiça, e ficava diferente, porque a fumaça é perfumada. A gente tinha poucos utensílios: uma panela, uma frigideira, um escorredor. Tentava improvisar o máximo com os poucos utensílios e com o que comprava na estrada. Comprava um pão, depois achava um salame e pensava no que fazer com isso. Essa descoberta de misturar o que achava e o método do fogo com certeza influencia o modo como cozinho.

Perdemos o contato com os elementos? Como reverter isso?
Por viver em cidades e cada vez mais voltados para o consumo de bens materiais e até de conteúdo, deixamos que a comida fosse terceirizada, que ela fosse feita por restaurantes ou corporações. Perdemos o contato direto com a alimentação, e isso desconecta de coisas importantes, como o respeito pelo animal que se come, e ficamos mais covardes, com medo da comida, de cheiros… Foi um papo que compramos das corporações: comida é perigosa. No pós-guerra, a indústria queria vender os enlatados feitos para a guerra e houve um trabalho de convencimento com dois argumentos: conveniência, “você não precisa mais ficar escrava do fogão”; e segurança, “nós sabemos o que estamos fazendo”. E a gente sempre soube fazer, aprendeu com nossas mães e avós. O que a gente pode fazer para se aproximar é se reapropriar da alimentação. Não talvez em todas as refeições, mas em parte delas tem que se envolver. É o caminho para comer melhor, cozinhar melhor, ser mais independente. Hoje isso está voltando um pouco, essa noção de que para ter qualidade de vida tem que se responsabilizar por partes da sua vida. A indústria não está preocupada com isso, quer vender.

O que é abraçar a preguiça ao cozinhar? No que isso é diferente de ter preguiça de cozinhar?
A preguiça é constante na minha vida. Tem a ver com dias preguiçosos sem muito o que fazer no campo. Mas sou meticulosa, tenho um trabalho enorme para fazer coisas do meu jeito. O que eu quis dizer é: tudo bem ter preguiça. É importante aceitar, abraçar o imperfeito. Muitas coisas de que gosto são super-simples. E essa simplicidade muitas vezes é mais preciosa que o complicado. E a preguiça ainda é um tabu. Eu e meu marido, a gente pensa muito nisso, que não precisa produzir mais, consumir mais. A gente quer voltar para o menos.

Quais são seus ingredientes preguiçosos favoritos?
A gente fazia piada de que tudo no Chou tinha limão ou hortelã. Na verdade, eu uso muitas especiarias e ervas. Quase todos os pratos têm uma ou outra ou várias delas. Agregam sabor e não precisam de processo complicado. Coentro, cominho, gengibre… Como matéria-prima, o ingrediente supremo do preguiçoso é macarrão. É das coisas que mais trazem conforto e mais fáceis de fazer. Não tem coisa melhor na vida que um macarrão simples, com um pouco de azeite e parmesão.

Quem são seus autores prediletos?
O título do meu livro é uma homenagem a Mary Frances Kennedy Fisher (autora de Como Cozinhar um Lobo). Com elegância ela fala dos assuntos mais profundos, como dor, solidão e fome de amizade, usando a comida. Além dela, Vladimir Nabokov – o que ele faz com a palavra é virtuoso. Dos brasileiros, Guimarães Rosa, que tem um lirismo que poucos têm e usa coisas simples e cotidianas.

RECEITA

Homus de lentilha vermelha
(do livro Como Cozinhar Sua Preguiça)

Homus de lentilha vermelha (foto de Gui Galembeck no livro Como Cozinhar Sua Preguiça)

Ingredientes
1/4 de colher de sopa sementes de cominho
250 gramas de lentilha vermelha
1 1/2 colher de sopa de pasta de gergelim (tahine)
1 dente de alho
Azeite de oliva extravirgem
Sal a gosto
1 limão tahiti
1 pitada de sumac (opcional)
Para servir:
Pão, cenourinhas e outros vegetais crus

Modo de preparo
Esquente as sementes de cominho em uma frigideira para liberar seus óleos essenciais. Em um pilão ou moedor de especiarias, pulverize-as até virarem pó. Reserve.

Cozinhe as lentilhas em água, seguindo as instruções do pacote, até ficarem macias. Escorra bem. No liquidificador ou em um processador de alimentos, processe a lentilha com o tahine, o alho, o cominho e um pouco de azeite. Tempere com sal e suco de limão a gosto.

Deixe na geladeira até esfriar. Na hora de servir, coloque um pouco de azeite de oliva por cima e polvilhe o sumac. Sirva com pão, cenourinhas e outros vegetais crus.


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