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Cozinha de vó, mas que vó?

Molho de tomate e pão do restaurante Hospedaria
Molho para chuchar o pão como na casa da avó do chef Fellipe Zanuto (foto: reprodução)

Sacolé de Tang é cozinha de vó? Ou pão com molho de tomate é que é? Gemada, talvez? Tostex? Sim, sim, sim e sim. Quer dizer, pode ser tudo isso, mas também pode ser nada disso. Porque cozinha de vó é aquela para a qual a bússola da nossa memória afetiva aponta. E é desses sabores que nos norteiam que vou falar no bate-papo “Cozinha de vó, mas que vó?”, com o chef Fellipe Zanuto, neste domingo (17/3), no festival Comida de Herança no Museu da Imigração.

É o que eu digo no livro Cozinha de Vó: o fio que, puxado, traz um mundo de experiências anteriores pode estar tanto em uma receita de cozido passada de geração em geração como em uma gelatina fantasia repleta de cubos multicoloridos aromatizados artificialmente. Isso não quer dizer que você deve repetir seus hábitos alimentares do passado. Mas vale a pena entendê-los.

No livro Regras da Comida, o jornalista americano Michael Pollan aconselha: não coma nada que sua avó não reconheceria como comida. Acho válido. Mas acho que devemos tomar cuidado com o mito da avó saudável.

Muita gente, inclusive nossas doces ou não tão doces avozinhas, caiu de amores pelas modernidades que a indústria alimentícia colocou na mesa a partir de meados do século 20. Caldo em cubinhos, sopa em pó, sobremesas de leite condensado eram soluções práticas para o dia a dia. E, se praticidade é um atributo tentador hoje, pense como era quando a mulheres começavam a entrar no mercado de trabalho e ainda estavam muito longe de dividir com os parceiros as tarefas da casa.

Minhas duas avós cozinhavam a tal “comida de verdade”, uma delas às vezes até com alimentos que produzia no sítio. Mas também ofereciam aos netos, com gosto, quitutes “de fábrica”, como sorvete de fruta em que duvido que houvesse fruta e iogurtes altamente açucarados e alegadamente vitaminados.

E as duas avós eram tão diferentes.

Helena era minha avó bailarina. A avó que saltava nas aulas de dança, suava nas coxias dos espetáculos, dava abraços molhados depois dos aplausos, caía da escada, batia o carro, perdia os óculos. Falava com plantas, cães e gatos, amava e era amada por Seu Coisinha, o cachorro mais feio do mundo. Fazia pimentão recheado, gemada, sucos de beterraba e cenoura, queria que eu ficasse forte — nem que fosse tomando fígado batido com laranja (credo); mais tarde, queria que eu ficasse magra — e ereta, “barriga pra dentro, peito pra fora”. Cuidava da horta e do pomar do sítio, onde passei as férias que toda criança deveria ter. Me levava ao banco, ao cartório, ao mercado de Atibaia onde eu gostava de enfiar as mãos nas sacas de feijão. Foi aluna fundadora e solista da Escola Municipal de Bailados de São Paulo, casou adolescente com outro bailarino, Michel, meu avô francês, com quem eu disputava o camembert. A reedição do programa do Ballet do IV Centenário da Cidade de São Paulo, com fotos do dois, jovens e lindos, é dos objetos que eu mais amo ter. Ele morreu muitos anos antes dela, do coração. Ela seguiu apaixonada pela dança. Fez questão de trabalhar até a doença a imobilizar no hospital. Morreu encolhida, fraca, tão diferente da minha avó bailarina. Prefiro lembrar dela como nesta foto pendurada na parede da sua amada escola de balé:

Helena Weber
Minha avó Helena

Viquinha era minha avó que viajava. Da China à Nigéria, da Inglaterra ao Peru, dos Estados Unidos ao Egito. Trazia do exterior presentes que eu achava incríveis, como uma caneta-suvenir cheia de líquido em que um ônibus londrino “andava” ou um armazém de papel, de montar, que eu queria ter até hoje. Com ela eu comia uvas-passas do lanchinho de bordo do ônibus de São Paulo a Curitiba, tomava chá com rosca, jogava mexe-mexe, tinha que me comportar à mesa (“olha os cotovelos”). Promovia almoços de adulto em que não era permitido sair antes de todos acabarem (e as conversas eram looongas).

Vó Viquinha
Minha avó Viquinha

Da Vó Viquinha vieram os cadernos de receitas que, junto com o caderno minha mãe, foram a base para o meu projeto de resgate de memórias e pratos de família. Um dos cadernos trazia a anotação abaixo, tão cheia de expectativas da jovem recém casada que ela provavelmente era quando a escreveu.

Anotação em caderno de receitas da Vó Viquinha
Caderno da avó Viquinha

E cozinha de vô?

De cozinha de vô, não tenho muito o que falar. Do meu avô Michel, lembro dos queijos e da mancha escura que ele deixou no teto sobre o fogão por causa de um princípio de incêndio. Do avô Armando lembro das histórias à mesa, especialmente uma que levava ao pé da letra a expressão “ficar conversando com a comida”: um sujeito chamado João Gerá comeu bugio na quaresma e passou a ser assombrado pelo bicho dentro do estômago. Educativo.

Na exposição Migrações à Mesa, que reuniu cadernos de receitas de diferentes origens no Museu da Imigração em 2016, os homens também eram lembrados mais pela ausência do que pela presença — fora uma ou outra exceção.

Mas isso está mudando. Pedro, meu filho, experimenta vez ou outra a comida do vô (que mora longe). E imagino que um dia meus netos poderão aproveitar os pratos do meu marido, Marcos (do blog Cozinha Bruta).

Assim como provavelmente vão aproveitar a cozinha do vô os futuros netos do chef Fellipe Zanuto, com quem vou dividir o bate-papo no Museu da Imigração. No restaurante Hospedaria, Fellipe tenta servir uma cozinha autenticamente paulistana: estrogonofe, churrasco com farinha de milho, risoto cremoso de arroz agulhinha, bolo gelado de coco…  

A inspiração do chef vem, em grande parte, da cozinha das suas avós Elzira e Marlene. Para a feira Comida de Herança, ele vai preparar molho de tomate para chuchar o pão (como na casa da avó Marlene) e porco na panela com arroz, feijão e queijo frito na banha (como na casa da avó Elzira). Vai perder?

Arroz, feijão, porco e queijo frito do chef Fellipe Zanuto
Prato do chef Fellipe Zanuto tentando reproduzir a comida da avó Elzira (foto: reprodução)

 

Serviço: feira Comida de Herança

Domingo, 17/3/19

13h – Autógrafos do Cozinha de Vó e conversa com o público sobre histórias e receitas.

14h – Bate-papo com o chef Fellipe Zanuto sobre heranças culinárias e preparos de pratos de família.

Onde: Museu da Imigração (R. Visc. de Parnaíba, 1316,  Mooca, São Paulo – SP. Próximo ao metrô Brás).

Pimentões recheados da Vó Helena

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Pimentões recheados de carne moída: o refogado deve ser bem úmido

Esta receita não saiu de nenhum caderno, mas da memória que eu tenho da minha avó Helena cozinhando. É comida simples, saudável, feita com cuidado por alguém que a vida toda trabalhou muito (em horas e intensidade) como professora de balé. Para mim, um prato com gosto de saudade.

Teste número 42: pimentões recheados
Fonte – Lembranças da comida da minha avó Helena.
Grau de dificuldade – Fácil.
Resultado – Ótima refeição caseira.

Ingredientes
1 cebola grande
1 dente de alho grande
Azeite
500 gramas de carne moída (usei capa de filé)
6 azeitonas pretas
1 lata de tomates pelados
Cominho, pimenta-do-reino e sal a gosto
Farinha de rosca (o suficiente para dar liga, cerca de 3 colheres de sopa. Outra opção é usar miolo de pão picadinho — acho que era o que minha avó fazia)
Coentro (acho que minha avó usaria salsinha, mas eu tinha coentro fresco em casa e resolvi colocar no prato)
3 pimentões verdes grandes (ou pequenos, em maior quantidade, se quiser porções individuais)

Modo de preparo
Em uma panela ou frigideira grande, refogue a cebola e o alho picados em um fio de azeite. Mexendo sempre, acrescente a carne moída e as azeitonas picadas. Quando estiver bem refogado, junte os tomates, previamente picados, e o cominho, a pimenta e o sal. Deixe secar um pouco, depois acrescente um pouco de farinha de rosca e o coentro picado. O recheio deve ficar bem úmido.

Corte fora a tampa de cada pimentão (a parte com o cabo e as sementes) e reserve. Pelo buraco, cuidadosamente retire com uma faca as partes brancas do interior.

Com uma colher, recheie os pimentões de carne moída. Recoloque a tampa e prenda com palitos.

Posicione os pimentões em uma travessa, regue com um fio de azeite e cubra com papel-alumínio. Leve ao forno quente. No final do cozimento, retire o papel-alumínio para dourarem um pouco.

Na hora de servir, retire os palitos. Esta receita vai muito bem com arroz, feijão e salada verde.