Mês: janeiro 2018

Salve o pavê. E abaixo o tio do pavê

Essa sobremesa clássica (aqui, na versão com abacaxi) é gostosa como almoço em família, mas menos complicada

Montagem de pavê de abacaxi - O Caderno de Receitas

Sou contra a piada do pavê. Você sabe, aquela, “é pavê ou pra comê?”. Desconfio que ela seja responsável pelo declínio dessa sobremesa, que já foi presença obrigatória em qualquer festa bem alimentada e aos poucos perdeu espaço nas celebrações. Comida de velho, fui obrigada a ouvir recentemente. Também, é raro, raríssimo, ver o doce apresentado à mesa sem que alguém solte o mesmo velho gracejo. E basta ouvi-lo para a saliva secar um pouquinho — por sorte, a tigela de cremes, frutas e açúcares está ali, ao alcance da colher, para amansar olhos virados de constrangimento.

Uma bobagem abandonar o pavê. Porque um bom pavê é como um bom almoço de família. Reconfortante, descontraído, doce sem medo de cair no enjoativo, gostoso sem pretensão. É caseiro, mas muitas vezes leva leite condensado, que é uma intromissão da indústria, mas ninguém mais lembra. Tem camadas que se misturam, viram outra coisa quando juntas. Cansa, às vezes. Em outras, é tudo que a gente quer — se servir direto da tigela, raspar o prato, repetir, falar bobagem em terreno conhecido (sem medo de virar o tio do pavê).

A grande diferença é que pavê é descomplicado – o que família raramente é. Mais um motivo para abraçar o doce.

Preparei a receita abaixo, de pavê de abacaxi, com minha mãe nas festas de fim de ano (e na correria, não fiz foto melhor; me desculpe). Minha mãe, por sua vez, aprendeu com uma tia, que também usa o creme de abacaxi para rechear bolos. Bolo que lembra festa, que lembra mutirão em família… Mas essa já é outra história. Quanto à do pavê, resolvi pesquisar. No livro Básico. Enciclopédia de Receitas do Brasil, de Ana Luiza Trajano, li que o doce virou moda décadas atrás e que o nome vem de pavage, pavimento em francês. Já no jornal Metrópole, descobri a existência de “paveterias” – não gosto da nova palavra, que parece colocar a sobremesa caseira na mesma onda das paleterias, comidarias, marmitarias e outras “coisarias” que têm pipocado por aí, mas aprecio a iniciativa. Fica, pavê. Viva a comida de vó!

Teste número 83: pavê de abacaxi
Fonte – Minha mãe, a partir de uma receita de uma tia-avó.
Grau de dificuldade – Fácil.
Resultado – Gostoso feito almoço de família – e a sobra do dia seguinte fica ainda melhor.

Ingredientes
1 abacaxi
6 colheres (sopa) de açúcar
1 lata de leite condensado
1 lata de leite (medida na lata do leite condensado)
4 ovos (com gemas e claras separadas)
1 lata de creme de leite
Biscoito tipo champanhe
Rum ou outra bebida (opcional)
Raspas de casca de 1 limão

Modo de fazer
Corte o abacaxi em cubinhos. Cozinhe com duas das colheres de açúcar até o abacaxi mudar de cor. Reserve.

Com o fogo desligado, misture em uma panela o leite condensado, o leite e as  gemas, colocadas uma a uma. Ligue o fogo baixo e siga mexendo até começar a engrossar, fazendo um creme homogêneo. Então desligue o fogo imediatamente. Leve à geladeira.

Com uma peneira ou um escorredor, separe a fruta e a calda. Reserve ambas.

Misture o creme de leite ao creme de gemas frio. Depois, junte ao creme os pedaços de abacaxi.

Faça o suspiro: bata as claras até firmarem e, ainda batendo, acrescente quatro colheres de açúcar.

Em uma tigela, disponha as camadas:

      • creme;
      • biscoito embebido na calda de abacaxi (ou na calda misturada a um pouco de rum);
      • creme;
      • biscoito embebido na calda de abacaxi (ou na calda misturada a um pouco de rum);
      • creme;
      • suspiro salpicado com raspas de limão.

Leve à geladeira para firmar.

Para cozinhar mais:

 

Comida de vó: bardana com shoyu e pimenta

O Projeto Mesa da Vó entrou em cozinhas paulistanas de diversas origens. Uma delas é a de Hideko, filha de japoneses que vieram ao Brasil para trabalhar na lavoura de café – e avó da chef confeiteira Carolina Iwai, da Amma Chocolate

Hideko preparando bardana

Fotos:  Potyra Tamoyos / The Soul Kitchen Project

Hideko Oda Furuyama, 88 anos, fala pouco. Sentada diante da câmera, responde com sorrisos e poucas palavras às perguntas sobre a infância, os pratos preferidos, a cultura japonesa. Algumas vezes hesita, sem jeito: “Não lembro bem”. Até que se levanta para preparar bardana. Em pé diante do fogão, tem movimentos precisos, postura ereta, segurança ao dosar temperos e explicar procedimentos. Enquanto os ingredientes giram na panela, começam a fluir histórias: a chegada dos pais ao Brasil, ainda adolescentes, vindos do Japão para trabalhar em cafezais paulistas; as caminhadas de dezenas de quilômetros até sítios de amigos; os lanches de bolinho de arroz e omelete levados nos passeios.

É assim, em torno da comida, que rodam as histórias do projeto Mesa da Vó. Na série de almoços promovidos no Soul Kitchen Lab, em São Paulo, sabores e gestos buscam o tempo perdido na memória. E ajudam a preservá-lo. Atrás de Hideko, por exemplo, está, atenta, orgulhosa, a neta Carolina Iwai, chef confeiteira da Amma Chocolate. Foi ela quem indicou a avó a participar do projeto. E é ela quem discorre sobre o que torna comida de vó algo especial: “É a preocupação, o amor de quem está sempre pensando: você vai passar fome? Não pode passar fome!’”.

Esse cuidado se traduzia, por exemplo, nos bentôs de onigiri (bolinho de arroz) acompanhado de tempurá, omelete ou salsicha que a avó fazia questão de preparar para as netas quando iam passear na rua 25 de Março. Se traduz também na atenção ao preparar suas especialidades, como a bardana com shoyu que parentes tentam repetir mas não conseguem fazer igual. Outro favorito da família é a feijoada.

Como tantos outros imigrantes e descendentes, Hideko cozinha com elementos daqui e de lá. Seu caderno de receitas, com pratos bem brasileiros, como pão de mandioca, bolo de fubá e rocambole salgado, divide espaço com uma edição de 1953 do livro Dona Benta. Mas ela faz também um manju (bolinho de feijão doce) que coloca um sorriso no rosto da neta confeiteira.

Hideko com o livro Dona Benta

Hideko aprendeu com a mãe os pratos brasileiros. Esta, não teve opção a não ser se adaptar aos costumes da nova terra. Chegou ao Brasil aos 16 anos, com um casal de vizinhos que, sem filhos, obteve a autorização da família da moça para levá-la com eles. “Minha mãe aprendeu mais comida brasileira, porque mesmo se quisesse fazer comida japonesa não tinha o tempero e as outras coisas de que precisava”, diz Hideko. Mais do que a falta de matéria-prima, havia a barreira da língua. “Como não sabia português, quando queria um ovo, uma galinha, uma verdura, ela nem tinha como falar.”

Mesmo a bardana que hoje é especialidade de Hideko nem sempre esteve à mão. “Antigamente era difícil ter, só depois que a gente passou a comprar semente e plantar.” Agora, a bardana vem do mercado mesmo, geralmente do bairro da Liberdade. Entra em uma receita simples, mas de sabor rico e textura crocante. O pulo do gato está em deixar o vegetal de molho em água antes do preparo, para o caldo não escurecer. E em ter a boa mãe de Hideko, que faz tudo no olhômetro, sem anotar as quantidades.

RECEITA

Bardana com shoyu

Ingredientes
Bardana
Óleo de girassol
Shoyu
Açúcar
Pimenta dedo-de-moça

Modo de preparo
Raspe a película que envolve as bardanas e coloque-as imediatamente de molho em água.

Corte a bardana em tiras finas – você pode usar um ralador ou  descascador para fazer isso.

Aqueça um pouco de óleo em uma panela e jogue a bardana. Em seguida, adicione o shoyu, um pouco de açúcar. Mexa, experimente e, se preciso, acerto o sal. Adicione a pimenta bem picada.

Mexa até que a bardana esteja cozida, mas ainda crocante.

A chef confeiteira Carolina com a avó Hideko
A chef confeiteira Carolina com a avó Hideko

Leia também:

Mesa da Vó: o bolonhesa da nonna Maria Alessandra

Mesa da Vó: a coalhada de Edma

Mesa da Vó
A cada edição do Mesa da Vó, uma cozinheira foi convidada a servir para parentes, amigos e clientes pagantes as especialidades que costuma fazer para a família. As histórias contadas durante o evento e em conversas na casa da convidada abastecem vídeos e textos produzidos em parceria entre o Soul Kitchen e o site O Caderno de Receitas.

Salada de manga verde para aproveitar a fartura da estação


Café da manhã na pitangueira. Suco de amora catada na hora. Jaca, jambo, acerola, limão galego. E mangas, muitas mangas.

Acabei de passar alguns dias em uma casa com pomar em Brasília. As árvores, carregadas de frutas como nas memórias das minhas férias de verão da infância, no sítio da avó. Que delicia ver meu moleque acordando animado para colher as primeiras pitangas do dia. Pé no chão de terra, boca manchada de fruta, correrias alternadas com (curtos) momentos de descanso na rede, o tamborilar das mangas caindo de maduras.

Tantas mangas que dava para viver só delas. Fruta chupada no pé ou transformada em suco, chutney, creme, petisco, salada. Na receita abaixo, que servi como acompanhamento em um churrasco, ela entra ainda verde. Azedinha, dispensa limão ou vinagre. Ganha picância com alho picado, doçura com alguns pedaços levemente mais maduros, sal com o shoyu, mais sabor com o coentro.

Uma ideia de salada leve para aproveitar a fartura de frutas da temporada.

Ingredientes
Manga verde
Manga quase madura
Alho
Coentro
Shoyu

Modo de fazer
Descasque a manga e corte-a em tiras finas.

Pique bem o alho. Pique também o coentro.

Junte o shoyu e misture tudo.