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Não dê panela no Dia das Mães. Ainda

Montagem com anúncios antigos de panelas reproduzidos dos blogs http://www.anosdourados.blog.br e http://anunciosdeantigamente.blogspot.com.br/

Não, eu não quero ganhar panela de presente no Dia das Mães. Até porque já tenho bastante — ou temos, eu e meu marido. Mas me entristece perceber que a cozinha segue associada a um lugar de opressão da mulher. Homem no fogão é bacana: um ser completo, senhor das forças da natureza, conhecedor das coisas boas da vida, #homãodaporra. Mulher no fogão… Melhor caprichar na atitude, nas tatuagens e nas hashtags se não quiser ser tachada de recatada e do lar, pobrezinha.

Claro, isso no lar. Nos restaurantes, é diferente: restaurante é rua, é profissão, então ainda temos que picar muita cebolinha para alcançar as mesmas posições que os marmanjos. Dá para contar em um dedo o número de restaurantes chefiados por mulheres estrelados pelo Guia Michelin Rio de Janeiro & São Paulo 2018, que acaba de ser lançado. Ao lado de 18 estabelecimentos comandados por chefs homens, está lá o Maní, de Helena Rizzo, para evitar o vexame de uma constelação exclusivamente masculina.

Calhou de na mesma semana termos o lançamento do Michelin e o Dia das Mães. Nessa data, a sensibilidade feminina em relação ao ato de cozinhar chega ao ápice. Menções a comida de mãe, se feitas sem muito, muito cuidado, correm o risco de soar ofensivas. Eu, que trabalho resgatando receitas de família, sinto isso todos os dias, e ainda mais nesta época. Recentemente, quando sugeri dar cadernos de receitas para as mães, fiquei com vontade de acrescentar: vocês lembram que eu falei o mesmo no Dia dos Pais, certo? Não acrescentei, mas, ato falho, meti um #diadospais no fim de um post, logo corrigido.

Hoje uma amiga postou no Instagram: “Aviso aos filhos: domingo é Dia das Mães! Não confunda com chá de panela”. Choveram comentários:

Então vamos já consertar isso: chá de Zara ✅ chá de Forever 21 ✅ chá de bota e sapato novo ✅chá de massagem relaxante ✅✅ chá chá de viagem ✅✅ chá de me chama de rainha o dia inteiro ✅✅✅”

(O setor de serviços agradece.)

‘“Se algum dia meus filhos me derem alguma coisa pra casa, eu soco na cara deles.”

Doeu em mim. Nunca demos panela para a minha mãe (que eu me lembre..). Mas já dei para o meu marido, e ele gostou. Afinal, por que ele tem direito a esse prazer e eu não? Entendo, existe um simbolismo: a panela pode ser encarada como uma espécie de prisão em que nos cozinhamos em fogo baixo, sem possibilidade de exercer nossas escolhas — ou algo assim. Mas será que, ao largar as ferramentas de cozinha, não estamos também abrindo mão de uma força?

A comida nos conecta. Ser capaz de alimentar o outro é algo poderoso. Os homens já perceberam isso. Mas demoraram, até.  A indústria foi mais rápida. Lá em meados do século 20, já nos oferecia de bom grado soluções para quando estávamos cheias de trabalho, querendo ocupar novos espaços na sociedade e nos distanciar das obrigações de viver para o lar. Eletrodomésticos que liquidificavam, cozinhavam ou limpavam, leites condensados facilmente transformados em sobremesas, pós que viravam sopas, tudo isso veio para nos libertar. Exacerbadas que estávamos, aceitamos e agradecemos. Bem mais fácil que virar para os rapazes com quem estávamos casadas e dizer: a gente vai dividir as tarefas, amigão.

O tempo passou, nem nós nem os amigões somos os mesmos, ainda bem. Mas eu e várias outras mulheres percebemos que algo se perdeu no caminho. Ninguém tem que atrair homem pelo estômago — deus-me-livre-credo-cruz — e ninguém precisa cozinhar para ser mãe. Mas pode cozinhar. E cozinhar pode ser um prazer (como é para tantos homens). E cozinhar nos dá autonomia em relação às escolhas que a indústria gostaria de fazer por nós, nos dá a chance de criar momentos memoráveis e de lembrar de outros.

Neste Dia das Mães, não dê panela. Mas espero chegar a um dia em que a gente vai estar tranquilo para dar o presente que quiser.

Leia mais: 12 livros para mães que gostam de cozinhar.

(A imagem do post é uma montagem com reproduções dos blogs Anos Dourados e Anúncios de Antigamente)

Frango assado de pele crocante. O segredo? Fermento

Frango assado na panela de barro

A conta não fecha. Como meus pais dividiam um frango assado em uma casa com três crianças e dois adultos? Duas coxas, duas asas, um ossinho da sorte com duas pontas, cinco pessoas. De alguma forma, dividiam bem, porque nas minhas lembranças estou sempre feliz roendo asa ou fazendo um pedido enquanto segurava uma das pontas do osso da sorte. E duvido que eu tivesse privilégios de filha mais velha — nunca me serviram na disputa pelos lugares da janela no banco traseiro do carro. Talvez alguém gostasse especialmente do peito e eu não lembre. Talvez o gosto bom da comida compartilhada tenha prevalecido sobre as desavenças entre irmãos.

A receita abaixo, de pele fininha crocante e carne úmida, quase desmanchando, tem potencial para ser um desses pacificadores de lares. Os segredos são dois. O primeiro, peguei no site Serious Eats: esfregar fermento químico e sal na pele do frango, depois deixá-lo descansar por 12 a 24 horas descoberto na geladeira. O fermento altera o pH da pele, ajudando a dar a ela uma textura crocante e amarronzada, e se combina com os sucos da ave, formando pequenas bolhas sob a superfície. A segunda dica é assar o frango dentro de uma panela de ferro ou de barro — no início fechada, para preservar a umidade, depois aberta, para deixar dourar. Vale substituir por uma panela de ferro, mas eu usei a minha panelona de moqueca capixaba e estou feliz da vida em expandir os limites dela além do peixe (descobri que ela também serve para fazer um ótimo pão).

Ingredientes
1 colher (chá) de fermento químico
1 colher (sopa) de sal
Pimenta-do-reino moída na hora
Páprica defumada
1 frango, com miúdos removidos
Alecrim fresco
1 limão
2 cebolas

Modo de preparo
Em uma tigelinha, misture o fermento, o sal, a pimenta  e a páprica. Esfregue essa mistura por toda a parte externa do frango, em cima e embaixo. Espalhe nele também as folhas de alecrim; coloque alguns galhos na cavidade interna.

Deixe o frango descansar em uma tigela na geladeira, descoberto, por 12 a 24 horas.

Corte a outra cebola em pedaços e os coloque dentro da cavidade interna do frango. Corte o limão em dois pedaços e também os coloque na cavidade interna.

Forre uma panela de barro ou de ferro com uma cebola em rodelas. Posicione o frango sobre elas.

Tampe a panela e leve ao forno pré-aquecido a 220 ºC. Quando o frango estiver quase pronto, abra a panela e deixe mais um pouco para dourar (se seu forno tiver a função,  aproveite para usar). O tempo de cozimento vai depender do tamanho da ave e da potência do forno: o meu demorou quase 1h30, mais uns minutos de grill.

Para cozinhar mais:

12 livros para mães que gostam de cozinhar

livros para o Dia das Mães

Livro de comida serve para ensinar receitas mas também para inspirar, fazer pensar, abrir o apetite. Abaixo, listei alguns dos meus favoritos como sugestões apetitosas de presente para o Dia das Mães.

Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, de Marcella Hazan

Não tem foto, só uma ou outra ilustração. Mas tem quase tudo o que você precisa saber sobre molhos, massas, risotos, polentas, carnes e outros pratos da cozinha italiana. São quase 500 receitas com potencial para passar de geração para geração – se as páginas de papel não sobreviverem, talvez os sabores fiquem na memória.
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Todas as Sextas, de Paola Carosella

Paola é boa de cozinha e de histórias. Neste livro, reúne as duas coisas, começando com a chegada da avó italiana Mimina à Argentina e terminando com doce de leite (a ordem não é bem essa, mas já diz M.F.K. Fisher na epígrafe do livro: “Never ruin a good story by sticking to the truth”).
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Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil, de Valdely Ferreira Kinupp e Harri Lorenzi
PANC no Brasil
É de comer? Consulte neste livro de quase 800 páginas sobre plantas (ou partes delas) comestíveis e pouco conhecidas. Dois exemplos listados: peixinho-da-horta, cuja folha pode ser comida mas geralmente é cultivada com fins ornamentais, e mangará (inflorescência da bananeira), que entra em refogados. Há sugestões de receitas para cada um dos vegetais.
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Cozinhar, de Michael Pollan

Autor de vários livros sobre alimentação, aqui o jornalista americano investiga como o ato de cozinhar transforma os alimentos e nos transforma. Uma narrativa boa de devorar.
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Larousse dos Pães, de Éric Kayser

De brioches a ciabattas, de baguetes a croissants, 80 receitas bem ilustradas que dão vontade de trocar a padaria pelos pães feitos em casa. Quase todas levam fermento natural.
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Comida de Verdade, de Yotam Ottolenghi

Quando ganhei este livro, fui folheando e babando sem me dar conta que todas as receitas eram vegetarianas. Depois percebi e continuei babando. Pense em pratos bons para quem não come carne e também para quem come, como tagliatelle com nozes e limão-siciliano, sopa de cogumelos picantes e grão-de-bico cozido lentamente com torrada e ovo poché. Tudo apetitosamente fotografado.
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Todas as Técnicas Culinárias – Le Cordon Bleu

Tenho em casa há anos e vira-e-mexe dou uma espiada. É desses livros para consultar quando bate uma dúvida sobre molhos clássicos ou sobre o melhor jeito de descascar, cortar ou cozinhar ingredientes que vão de frutas a peixes.
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Sobremesas e suas técnicas – Le Cordon Bleu, de Laurent Duchene e Bridge Jones

Para as mães confeiteiras, uma versão doce do livro anterior.
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Cozinha Bruta, de Marcos Nogueira

Ok, foi meu marido quem escreveu. Mas o livro está na lista também pelo texto delicioso e pelas receitas que tenho a felicidade de provar e aprovar em casa. Não é só para brutos, mães também vão amar.
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Como Cozinhar sua Preguiça (em 51 Receitas), de Gabriela Barretto

O livro da chef do restaurante Chou, de São Paulo, tem sabor de brasa e de sítio. Fotos lindas e pratos descomplicados, para cozinhar com gosto, sem estresse.
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Cozinheiro Nacional

Uma das graças da cozinha são as conversas em torno da mesa e do fogão. E este livro certamente vai render bons papos, com sua reunião de receitas que se comiam no fim do século 19 no Brasil, incluindo “caça de cabelo” (como onça, tamanduá e macaco), aves silvestres e tartaruga – não tente fazer isso em casa, mas pode ler à vontade.
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À Mesa com Proust, de Anne Borrel, Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens

Torta de maçã, suflê de queijo, bouillabaisse e, claro, madeleines. O que o Marcel Proust comia – e descrevia – conduz o livro, recheado de receitas, citações, fotos e informações sobre a vida do autor de Em Busca do Tempo Perdido.
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A comida leve e saborosa da mãe que nunca engorda

 Andrea Kaufmann com a mãe, Anita, e a filha Ana
Andrea Kaufmann com a mãe, Anita, e a filha Ana

Este relato faz parte de uma série de depoimentos sobre delícias e histórias da cozinha de mãe

*Por Andrea Kaufmann

Minha mãe é escultora, minha avó, pintora. Eu nunca pintei, nunca esculpi, o que sempre gostei foi de cozinhar. Com minha mãe, aprendi a fazer uma comida leve. Na minha infância, ela cozinhava mais nos finais de semana, quando preparava pratos chiques e sofisticados, com poucos ingredientes e combinações. Amo o frango assado dela. E os cremes de entrada então? Tem de palmito, de couve-flor… Os molhos de salada são os melhores do mundo. Tem um que começa com ovo cozido amassado com garfo e misturado a mostarda, depois entram azeite, emulsionado como em uma maionese, e um pouco de vinagre — eu nunca acerto a acidez que ela consegue, sempre fica a mais ou a menos.

Algumas receitas da minha mãe, levei para o restaurante, como as milanesas e a vitela ao limone, que talvez seja o prato de que mais gosto. Também adaptei sardinha marinada em vinagre com creme e cebola, receita de origem judaica. Na minha versão, a sardinha passa por uma cura seca, com sal, e o creme vai por cima, como um chantilly avinagrado. Engraçado que minha mãe não faz muito peixe, e eu adoro, sou meio foca. Essa é uma das diferenças no nosso paladar. Outra é que sou superpimenteira e ela é contra pimenta. De resto, ela adora a minha comida. Se não gosta de alguma coisa, não fala…

Sardinha com creme de Andrea Kaufmann

Um dos ensinamentos que recebi da minha mãe foi o de que qualquer pessoa pode entrar na cozinha e fazer alguma coisa fácil, sem medo, sem estresse. Tem também uma coisa bem europeia, de todo dia ir ao mercado comprar os ingredientes. A cozinha dela era mais de fim de semana, porque nos outros dias quem preparava a comida (muito boa, aliás) era uma empregada mineira, que eu adorava observar. Geralmente a refeição tinha arroz, feijão, um grelhado, legumes, salada. Para minha mãe, carne e salada. Por isso ela é magra. A vida inteira pesa 50 quilos!

*Andrea Kaufmann é chef, filha de Anita e mãe de Isadora, 1, Ana, 12,  e Matias, 17.

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Quando o bacalhau com dendê encontra o arroz japonês

Shoichi Iwashita e a mãe, Irene
Shoichi e a mãe, dona Irene

Este relato faz parte de uma série de depoimentos sobre as delícias e as histórias da cozinha materna

*Por Shoichi Iwashita

De um pai xintoísta/budista (no Japão, todo mundo pratica rituais das duas religiões) e de uma mãe baiana iniciada no candomblé e hoje espírita, nascemos eu e minha irmã. Filha mais velha de nove irmãos, nascida no interiorzão da Bahia, Irene, minha mãe, era responsável por cuidar da casa, de todos os irmãos e da cozinha, além de ajudar a mãe nos partos dos filhos mais novos. As dificuldades financeiras eram enormes. Talvez por isso, aqui em casa a geladeira precisa estar sempre abarrotada e dona Irene simplesmente não consegue fazer pouca comida (heranças das dificuldades passadas marcadas na alma, costumo dizer para ela). Não peça para ela fazer o seu prato, mesmo que você lhe diga que está sem fome e quer “só um pouquinho”. Acho que, assim como acontece com todas as pessoas que gostam de cozinhar, ato indissociável da generosidade de compartilhar não só a comida, mas prazer, felicidade, convívio, sua satisfação é ver todos comendo muito. Pratos e panelas vazias.

Um dos meus pratos favoritos da cozinha da dona Irene é o bacalhau com batata e azeite de dendê e leite de coco, que a gente come com um pirão feito do caldo e com arroz japonês (aquele só cozido, sem tempero algum; a untuosidade do azeite e o pequeno formato arrendondado dos grãos de arroz japonês – o nihonmai – fazem com que a gente tenha no prato um risoto improvisado). E a receita, além de saborosíssima, não é nada difícil.

Esse bacalhau, com sabores da Bahia, de Angola, com um pé no terreiro, é o prato preferido do meu pai e de todos os seus amigos japoneses que limpam as panelas quando vêm jantar aqui”

Com um quilo de postas altas de bacalhau dessalgado, você pode usar meio quilo de batatas cortadas ao meio. Pique duas cebolas, três tomates, dois pimentões, uma xícara de azeitonas, um maço de coentro, salsa e cebolinha, e misture tudo. Numa panela grande, forre o fundo com uma camada de tempero, uma camada de batata e, por cima, uma de bacalhau. Vá alternando (mais uma camada de tempero, uma de batata e mais uma de bacalhau). Por último, acrescente 200 ml leite de coco e 200 ml de azeite de dendê. Nada mais. Feche a panela e ligue o fogo. Aí, é só observar o ponto do bacalhau e o das batatas.

Se o sabor do bacalhau com todos esses temperos é superlativo, eu adoro o pirão feito com o caldo que equilibra os sabores na boca. Para fazer o pirão, é só coar um pouco do caldo numa panela pequena. Molhe uma xícara de farinha de mandioca com água e misture com o caldo. Ligue o fogo e mexa sempre até que a massa comece a se desprender da panela.

Esse bacalhau, com sabores da Bahia, de Angola, com um pé no terreiro, também é o prato preferido do meu pai e de todos os seus amigos japoneses que limpam as panelas quando vêm jantar aqui, para a felicidade de dona Irene. E aí, ela fala toda orgulhosa: “Viu, comeram tudo e não passaram mal com dendê!”.

*Shoichi Iwashita, filho de mãe baiana e pai japonês, é editor do site Simonde.

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