(Foto: Jared eberhardt / Flickr)
Quem já tentou parar de fumar sabe: se tem uma indústria boa em manter a fidelidade dos clientes, é a indústria do tabaco. E ela usou essa expertise em outro filão, o de bebidas açucaradas para crianças, segundo um artigo de pesquisadores da Universidade da Califórnia que repercutiu no The New York Times.
Na verdade, não é segredo que empresas de tabaco diversificaram seus negócios investindo em produtos infantis — Tang e Kool-Aid (Ki-Suco no Brasil) pertenceram à Philip Morris entre 1985 e 2007; a R.J. Reynolds, do cigarro Camel, vendeu o líquido doce chamado Hawaiian Punch entre 1963 e 1989. A novidade é a análise dos pesquisadores mostrando como métodos similares aos empregados para vender cigarro conquistaram a clientela mirim.
Ontem, em uma apresentação na feira Comida de Herança, no Museu da Imigração, eu falei sobre como muito do que a gente chama de comida de vó é comida que a indústria colocou na nossa casa. Cheguei a perguntar para o público: “sacolé de Tang é comida de vó”? E a resposta era sim, pelo menos na casa da avó Elzira do chef Fellipe Zanuto, do restaurante Hospedaria.
Hoje li a matéria do The New York Times sobre a ligação entre tabaco e suquinho doce e me senti ingênua. Porque, no evento, eu falei de como o marketing fisgou adultos com argumentos como praticidade, segurança, preço, benefícios para a saúde (tudo bem vitaminado!). Mas, no caso das bebidas para crianças, o golpe era mais baixo, na altura das gôndolas ao alcance de mãozinhas infantis.
Para mostrar isso, os pesquisadores da Califórnia vasculharam documentos internos das companhias, disponibilizados como parte de um acordo entre elas e estados americanos que queriam recuperar custos de saúde relacionados ao tabagismo.
“As campanhas de marketing usavam personagens de desenhos animados que apelavam para as aspirações das crianças, uma abordagem também usada para criar fidelidade a marcas de cigarros — por exemplo, o uso do Joe Camel para recrutar jovens para fumar”, descreve o estudo publicado no jornal médico The BMJ. “As empresas de tabaco também promoveram suas bebidas usando estratégias de marketing integrado que foram originalmente projetadas para vender cigarros, cercando as crianças com mensagens consistentes de produtos em casa, na loja, na escola, no estádio e no parque temático.”
Reprodução de montagem do The New York Times com propagandas de cigarro e bebidas infantis
A Philip Morris, depois de comprar a General Foods e, com ela, a marca Kool-Aid, resolveu reduzir a verba de propaganda voltada para mães e aumentar a voltada para crianças. “Decidimos focar o marketing nas crianças, em que sabemos que nossa força é maior”, declarou um executivo em uma conferência em 1987. Em outro momento, um diretor chama o programa de fidelidade da Kool-Aid, com distribuição de brindes, de “nossa versão do Marlboro Country Store” (o programa de fidelidade da marca de cigarros). Reuniões de sinergia, esse termo tão querido do mundo corporativo, ajudavam na troca de experiências — e bancos de dados — entre as divisões da empresa.
Já na R.J. Reynolds os registros mostram a empresa fazendo testes com donas-de-casa e crianças para avaliação de doçura, sabor e cores. “O ideal… é deixar as pessoas querendo mais”, diz um relatório.
Surpreendente? Não. Coisa do passado? “Essas técnicas continuam a ser usadas apesar do acordo da indústria para não promover dessa forma produtos não-saudáveis”, dizem os pesquisadores. Funcionava? Ô.
Ki-Suco, por exemplo, foi relançado, “de olho nos consumidores saudosos da bebida que fez parte de suas infâncias”, segundo matéria da Pequenas Empresas & Grandes Negócios. (A marca hoje não tem relação com a Philip Morris, assim como Tang não tem.).
Repito o que eu disse no bate-papo ontem. O fio da memória afetiva que, puxado, traz um mundo de experiências anteriores pode estar tanto em uma receita de cozido passada de geração em geração como em uma gelatina fantasia repleta de cubos multicoloridos aromatizados artificialmente. Ou no gelinho de Tang.
Seja qual for o caso, é interessante entender de onde vêm nossos gostos e hábitos alimentares. Não necessariamente para repeti-los.