Não, eu não quero ganhar panela de presente no Dia das Mães. Até porque já tenho bastante — ou temos, eu e meu marido. Mas me entristece perceber que a cozinha segue associada a um lugar de opressão da mulher. Homem no fogão é bacana: um ser completo, senhor das forças da natureza, conhecedor das coisas boas da vida, #homãodaporra. Mulher no fogão… Melhor caprichar na atitude, nas tatuagens e nas hashtags se não quiser ser tachada de recatada e do lar, pobrezinha.
Claro, isso no lar. Nos restaurantes, é diferente: restaurante é rua, é profissão, então ainda temos que picar muita cebolinha para alcançar as mesmas posições que os marmanjos. Dá para contar em um dedo o número de restaurantes chefiados por mulheres estrelados pelo Guia Michelin Rio de Janeiro & São Paulo 2018, que acaba de ser lançado. Ao lado de 18 estabelecimentos comandados por chefs homens, está lá o Maní, de Helena Rizzo, para evitar o vexame de uma constelação exclusivamente masculina.
Calhou de na mesma semana termos o lançamento do Michelin e o Dia das Mães. Nessa data, a sensibilidade feminina em relação ao ato de cozinhar chega ao ápice. Menções a comida de mãe, se feitas sem muito, muito cuidado, correm o risco de soar ofensivas. Eu, que trabalho resgatando receitas de família, sinto isso todos os dias, e ainda mais nesta época. Recentemente, quando sugeri dar cadernos de receitas para as mães, fiquei com vontade de acrescentar: vocês lembram que eu falei o mesmo no Dia dos Pais, certo? Não acrescentei, mas, ato falho, meti um #diadospais no fim de um post, logo corrigido.
Hoje uma amiga postou no Instagram: “Aviso aos filhos: domingo é Dia das Mães! Não confunda com chá de panela”. Choveram comentários:
“Então vamos já consertar isso: chá de Zara ✅ chá de Forever 21 ✅ chá de bota e sapato novo ✅chá de massagem relaxante ✅✅ chá chá de viagem ✅✅ chá de me chama de rainha o dia inteiro ✅✅✅”
(O setor de serviços agradece.)
‘“Se algum dia meus filhos me derem alguma coisa pra casa, eu soco na cara deles.”
Doeu em mim. Nunca demos panela para a minha mãe (que eu me lembre..). Mas já dei para o meu marido, e ele gostou. Afinal, por que ele tem direito a esse prazer e eu não? Entendo, existe um simbolismo: a panela pode ser encarada como uma espécie de prisão em que nos cozinhamos em fogo baixo, sem possibilidade de exercer nossas escolhas — ou algo assim. Mas será que, ao largar as ferramentas de cozinha, não estamos também abrindo mão de uma força?
A comida nos conecta. Ser capaz de alimentar o outro é algo poderoso. Os homens já perceberam isso. Mas demoraram, até. A indústria foi mais rápida. Lá em meados do século 20, já nos oferecia de bom grado soluções para quando estávamos cheias de trabalho, querendo ocupar novos espaços na sociedade e nos distanciar das obrigações de viver para o lar. Eletrodomésticos que liquidificavam, cozinhavam ou limpavam, leites condensados facilmente transformados em sobremesas, pós que viravam sopas, tudo isso veio para nos libertar. Exacerbadas que estávamos, aceitamos e agradecemos. Bem mais fácil que virar para os rapazes com quem estávamos casadas e dizer: a gente vai dividir as tarefas, amigão.
O tempo passou, nem nós nem os amigões somos os mesmos, ainda bem. Mas eu e várias outras mulheres percebemos que algo se perdeu no caminho. Ninguém tem que atrair homem pelo estômago — deus-me-livre-credo-cruz — e ninguém precisa cozinhar para ser mãe. Mas pode cozinhar. E cozinhar pode ser um prazer (como é para tantos homens). E cozinhar nos dá autonomia em relação às escolhas que a indústria gostaria de fazer por nós, nos dá a chance de criar momentos memoráveis e de lembrar de outros.
Neste Dia das Mães, não dê panela. Mas espero chegar a um dia em que a gente vai estar tranquilo para dar o presente que quiser.
Leia mais: 12 livros para mães que gostam de cozinhar.
(A imagem do post é uma montagem com reproduções dos blogs Anos Dourados e Anúncios de Antigamente)