Filho, perdão pelo sol que nós tiramos do seu céu.
Perdão pela chuva preta que você não pode beber. Não, não brinque de sentir as gotas na língua. Coisa suja.
Perdão pelas árvores com frutas encardidas.
Por tanta comida jogada fora.
Pelos rios que você nunca vai ver, porque secamos, enterramos, enlameamos.
Pela terra que morre e não dá mais nada.
Pelo pó de ferro que gruda nos pés e nos pulmões quando visitamos a casa da vó. Dos pés, esfregando sai.
Pelos peixes cheios de mercúrio, pelas abelhas que desaparecem.
Perdão por tudo que você nunca vai comer e beber. Por toda vida que você não vai conhecer.
Até chocolate dizem que corre o risco de acabar, acredita? Um mundo sem cacau…
Perdão pelo calor, perdão pelo frio, perdão pelo ar ruim que queima dentro da gente.
Perdão pelo mar. Eu sei, você gosta da praia, tem pedra, tem areia, tem planta. Mas a tia viu lixo, viu gato morto boiando. Não controlamos as correntes, filho.
Até tentamos, sabe, criar uma bolha. Comprar comida sem veneno, hortinha na janela, domingo no parque, escola com árvore.
Não é suficiente. A realidade explode a bolha. Invade nossa boca como o plástico que se quebra em pedacinhos e contamina tudo.
Eu queria ter feito mais, quero fazer mais, mas agora sinto que faltam forças. Só você para me animar. Talvez amanhã. Amanhã pode ser tarde.
(Texto que eu publiquei no blog O Caderno de Receitas no Globo)