Mês: janeiro 2017

Ovos nevados — ou nacos de céu

Ovos nevados - O Caderno de Receitas

Nadei bastante até acertar essa sobremesa. Na memória, claras de textura etérea flutuavam como ilhas sobre um mar de creme aveludado (daí o nome em francês, îles flottantes — ilhas flutuantes). Ou como nuvens no prato. Porque, na minha família, ninguém falava îles flottantes, mas ovos nevados, e eu, menina dos trópicos, ouvia neve e pensava em nuvem. Mordia pedaços do céu sempre que minha avó Viquinha fazia o doce — e ela fazia muitas vezes, mas não tantas a ponto de se perder o caráter delicado e festivo. Ovos nevados eram reservados aos almoços ou jantares de adultos bem vestidos, reunidos em torno da mesa para contar histórias que eu nem sempre entendia. Tampouco entendi a receita quando tentei reproduzi-la a partir do que minha avó anotou em um de seus cadernos.

Doce com ovo é coisa para gente grande. Espere demais, murcha. Esquente demais, empelota. Esquente de menos, está cru. Pare de bater, desanda. Fiz praticamente tudo isso na minha primeira tentativa de materializar as lembranças dos ovos nevados. As claras em neve definharam, o creme inglês degringolou e virou uma ambrosia acidental.

Pelo visto, eu não era a única a sentir saudades da sobremesa. Minhas tias que acompanham o blog me perguntavam quando eu faria os ovos nevados da vovó. Uma delas, Esther, no meu último aniversário mandou uma mensagem contando que, em viagens, tenta comer île flottante sempre que encontra no cardápio. Sua favorita nessas andanças é a do Café Constant de Paris. Também comi uma dos deuses no restaurante Le Relais de la Diligence, em Mersault, na Borgonha. Quase tão boa quanto a da minha avó… Um detalhe é que os franceses muitas vezes jogam caramelo e amêndoas por cima das claras, e minha avó jogava raspinhas de limão. O toque cítrico é bem-vindo.

Quando minha mãe veio a São Paulo para o Natal, resolvi tentar novamente. Desta vez, teria a assistência dela, ou pelo menos o apoio moral. Também pesquisei no livro Receitas com Ovos, de Michel Roux, porque o caderno de receitas da minha avó não falava nada de tempos nem explicava procedimentos ou especificava quantidades (ela indicava três garrafas de leite, mas não sei bem o que isso significava na década de 1950, e sugeria açúcar à vontade).

Atentas a cada passo, eu e minha mãe conseguimos uma boa sobremesa para a ceia. Agora que já fiz, nem parece difícil.

Teste número 75: ovos nevados
Fonte –  Caderno de receitas da minha avó Viquinha.
Grau de dificuldade – médio.
Resultado – Um pedaço do céu.

Ingredientes
6 ovos
1 litro de leite
1 xícara e meia de açúcar
Óleo
Raspas de um limão
1 fava de baunilha cortada no sentido do comprimento ou gotas de extrato de baunilha
Canela em pó

Modo de preparo
Separe gemas e claras.

Bata as claras em neve, então polvilhe ¾ de xícara de açúcar por cima e bata mais, até ficarem bem firmes, a ponto de poderem ser cortadas.

Em uma panela larga, aqueça o leite, ½ xícara de açúcar e metade das raspas de limão (só a parte verde; a branca é amarga). Quando começar a ferver, baixe o fogo para não espumar.

Posicione uma tigela de água fria perto da tigela com as claras e o fogão. Usando uma colher grande, pegue uma colherada de claras batidas. Afunde a colher no leite para que a ilha se solte. Limpe a colher na água fria, então pegue outra ilha e coloque no leite. Deixe que as ilhas cozinhem pelo menos dois minutos de um lado, depois as vire e cozinhe outros dois minutos. Retire com uma escumadeira, deixe escorrer um pouco sobre um pano, depois transfira para uma tigela. Repita o procedimento até dar conta de toda a clara (na minha panela, cozinhei duas ou três claras por vez; mais do que isso, era difícil movê-las com a colher e a escumadeira). Reserve as claras cozidas na geladeira.

Acrescente a baunilha ao leite e suba o fogo para médio.

Em uma tigela, bata as gemas com o restante do açúcar até chegarem ao ponto de fita (quando escorre do batedor, a mistura forma uma fita).

Despeje gradualmente o leite fervente sobre as gemas sem parar de batê-las, depois volte a mistura para a panela. Em fogo baixo, siga mexendo com uma espátula ou uma colher de madeira. Estará pronto quando o creme formar uma camada fina sobre a madeira do utensílio, e um dedo passado sobre essa camada abrir uma trilha que não se fecha imediatamente. Tire então do fogo e espere esfriar mexendo de vez em quando.

Despeje o creme frio sobre as claras em neve. Polvilhe canela e salpique as raspas de limão restantes. Deixe na geladeira até a hora de servir.

Para cozinhar mais:

Frango assado da minha mãe – agora na história de outra família

Receita de frango assado com linguiça, mandioquinha e batata (O Caderno de Receitas)
Muitos anos atrás, no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça e linguiça tinha trema, eu era repórter da revista infantil Recreio, da Editora Abril. Lá conheci a jornalista Monica Pina. Voltamos a nos falar recentemente, quando postei uma foto de meu filho de 4 anos se divertindo com uma das Recreios que ajudei a fazer. Uma alegria ver meu trabalho de outra época entreter o Pedro. Outra alegria foi saber que Monica preparou e aprovou uma receita da minha mãe que publiquei aqui. Porque uma das delícias de fazer este blog é ver sabores que permeiam minha memória se entrelaçarem às histórias de outras famílias.

Isto é um caderno de receitas, e cadernos de receitas são desde sempre redes sociais, com conteúdos compartilhados, comentados, curtidos ou espinafrados. Com a vantagem de que alimentam, e não apenas nossos egos. A receita da vizinha ou da tia ou da prima, muitas vezes creditada no título (pãezinhos da Dona Cordinha, bolinhas de queijo da Ana…), recebe adendos, dicas, avaliações: “é assim mas faço assado”, “muito bom”,  “ruim” (vi recentemente uma dessas resenhas negativas, sobre um pudim de ovos cozidos, em um caderno da minha avó Viquinha). Assim, em um telefone sem fio que borra o original, mas acrescenta novas camadas de lembranças e sabores, a receita pulava para outro caderno, e dali para outro e outro e outro.

Monica, pelo que me contou, fez o frango assado da minha mãe conforme as instruções que publiquei; se mudou algo, não percebeu. “Me fez lembrar almoços de domingo feitos por minha mãe”, disse. Mas desta vez a mãe dela ficou no apoio tático, para resolver dúvidas de emergência, enquanto Monica preparava o prato para o aniversário do pai. A família adorou o resultado – “Fez sucesso com os nostálgicos e com a criançada!” – e da próxima vez já pretende acrescentar pitacos próprios:

Duas dicas da minha mãe: é bom temperar o frango no dia anterior com suco de laranja, alho e outras coisinhas e deixar na geladeira; para que as batatas não precisem de tanto tempo no forno, é só fazer um ‘pré-cozimento’ das batatas com casca, com bem pouca água, na panela de pressão ou no microondas, sem deixar que fiquem moles”.

Abaixo, publico novamente o passo-a-passo do frango assado com linguiça, batata e mandioquinha, como feito pela minha mãe (acrescentei o tempo de preparo, a pedido da Monica). É um prato generoso, em que os ingredientes em pedaços emprestam sabor uns aos outros mas mantêm o caráter próprio. Siga as instruções ou acrescente pitacos a gosto.

Frango assado com linguiça, batata e mandioquinha

Ingredientes
Sobrecoxa de frango com osso e pele
Linguiça
Mandioquinha
Batata
Alho
Cebola roxa
Azeite
Sal
Alecrim
Limão-siciliano
Pimenta-do-reino

Modo de preparo
Distribua em um tabuleiro os pedaços de frango, linguiça, mandioquinha, batata, cebola e alho, depois tempere tudo com azeite (bastante), sal, alecrim e raspas da casca de um limão.

Leve tudo ao forno médio. Demora cerca de 40 minutos para o frango ficar pronto, mas é melhor checar antes, porque depende do forno e mesmo do tamanho do frango; aproveite a pausa para mexer os ingredientes no tabuleiro. Se perceber que o frango já está cozido mas as batatas não, retire a ave do tabuleiro, reservando-a (quanto menores os pedaços de batatas, mais rápido eles vão assar); no fim, junte novamente  o frango aos demais ingredientes.

Risoto de imigrante – prato com truque de avó

Risoto de imigrante do restaurante Hospedaria (Foto: Wellington Nemeth)

Fellipe Zanuto foi buscar na cozinha das avós de origem italiana – e de outras avós – inspiração para o seu Hospedaria, restaurante recém-inaugurado na Mooca. A ideia, ali, é servir comida que remeta a dos imigrantes do início do século 20. Pratos que os faziam lembrar da terra natal, mas preparados com a estrutura e os ingredientes disponíveis no Brasil: risoto com arroz agulhinha em vez de arbório; queijo meia-cura no lugar do parmesão, nada de azeite (e muita banha de porco).

Muito do cardápio remete à Itália, pela própria história do chef. Uma das entradas é o molho de tomate servido em uma panelinha para mergulhar nacos de pão – como Fellipe fazia quando menino na casa da avó materna, Marlene, dona da receita de molho. Mas há também referências ao Japão (no frango a passarinho acompanhado de maionese caseira de mis com wasabi, gengibre e salsa fresca), a Portugal (no arroz de bacalhau), à Grécia (no moussaka). Para finalizar a refeição, uma brasileiríssima goiabada acompanhada de bolo de fubá ou um prosaico gelinho (suco congelado no saquinho) de limões siciliano e taiti, gengibre e hortelã.

Não à toa, Fellipe é um dos apoiadores da mostra Migrações à Mesa, que reúne cadernos de receitas de famílias de diferentes origens no Museu da Imigração. Recomendo muito a mostra, até porque cadernos e outros objetos de minha avó materna, descendente de espanhóis, estão lá, até 27 de junho.

Assim como as receitas dos cadernos expostos no museu, o menu do Hospedaria é um mexidão paulista temperado de memórias e sabores familiares. E se tem um prato que traduz isso é o risoto de imigrante, um arroz de forno cremoso, farto, pedaçudo. Vem da avó paterna de Fellipe, Elzira, o truque que dá cremosidade ao arroz agulhinha: adicionar pés de galinha durante o cozimento, para que liberem colágeno (tutano também ajuda na consistência).

Fellipe Zanuto resgata receitas de imigrantes no restaurante Hospedaria
Fellipe no Hospedaria

Abaixo, a receita passada pelo chef.

Ingredientes
Óleo
1 cebola grande
1 cenoura
1 talo de salsão
6 pés de galinha
300 g de extrato de tomate
250 g de paleta de porco (a receita tradicional da família de Fellipe levava presunto)
250 g de sobrecoxa de frango desossada
1 kg de arroz agulhinha tipo 1
Caldo de legumes (se faltar líquido no cozimento do arroz)
20 vagens holandesas
10 ervilhas tortas
5 palmitos pupunha limpos
Azeite ou manteiga
200 g de queijo meia cura
Cebolinha
Sal
Pimenta
Ovos
Tutano (opcional)

Modo de preparo
Em uma panela grande, refogue com óleo metade da cebola picada em cubos grandes, a cenoura, o salsão e os pés de galinha. Adicione o extrato de tomate e refogue bem. Adicione 4 litros de água e deixe ferver e reduzir um pouco. Coe o caldo (a ideia de utilizar os pés de galinha é para dar sabor e colágeno ao caldo) e reserve.

Coloque a paleta no forno a 160 ºC, coberta com papel alumínio, e deixe de 2 a 3 horas.

Em outra panela, refogue o restante da cebola com os pedaços de sobrecoxa picados e o arroz. Adicione o caldo feito no início e cozinhe o arroz até ficar no ponto (se precisar de mais líquido, utilize um caldo de legumes básico).

Faltando poucos minutos para o final da cocção do arroz, adicione os pedaços de paleta em cubos.

Branqueie as vagens, ervilhas e o palmito (cozinhe-os rapidamente em água fervendo, em seguida mergulhe-os em uma tigela com água e gelo para interromper o cozimento). Refogue os vegetais rapidamente em uma frigideira com um pouco de azeite ou manteiga e reserve.

Coloque o arroz em uma assadeira, cubra com o queijo meia cura e leve ao forno no máximo de temperatura, apenas para derreter o queijo.

Frite os ovos com a gema mole. Tire o arroz do forno e monte nos pratos junto com os vegetais e com o ovo. Adicione então a cebolinha picada.

Dica: utilize tutano na finalização do arroz na panela. Coloque o quanto achar suficiente e misture bem. Irá trazer um ótimo gosto e uma ótima aparência ao arroz.

(Fotos: Wellington Nemeth)

Para cozinhar mais: