Categoria: Histórias

Crônicas sobre comida e histórias à mesa.

Se a vida é mesmo curta, melhor caprichar no recheio

Reprodução: livro Modernist Cuisine
Reprodução: livro Modernist Cuisine

A vida é curta. E as reuniões são loooongas.

É curta para a quantidade de beijos que eu quero dar no pé do bebê. Minúscula para completar 7 voltas ao mundo sem pressa e explorar todos os prazeres de dormir na própria cama, a sós ou acompanhada. Corrida para preparar as dezenas de doces e salgados do caderno de receitas da minha mãe. Apertada para ser jornalista, roteirista, historiadora, cozinheira, bailarina, florista, investigadora, veterinária, bióloga, agricultora – e até para viver tudo isso só nos bons livros, filmes, séries e revistas disponíveis por aí. Aliás, quem lê tanta notícia?

Se você der muita sorte (ou azar, sei lá), vai passar por 25 Copas do Mundo, mas não vai se lembrar das primeiras e talvez nem das últimas. Aliás, e nos 34 fins de semana que já ficaram para trás neste ano, o que você fez? Comeu bem, bebeu bem, transou bem, conversou bem, trabalhou bem, dormiu bem, viveu bem?

No intervalo entre duas Copas, vi a revista em que eu trabalhava fechar, participei do lançamento de um site, virei sócia de um restaurante, deixei para trás a vida de carteira de trabalho assinada (“Oi, desemprego!”), fiz viagens ótimas e médias, frequentei festas malucas e atravessei o Atlântico de avião com um bebê de colo, o que também é bem louco. Ganhei sobrinhos, conheci novos amigos e parei de ver outros, retomei e abandonei a academia 745 vezes, fiquei mais relaxada mas mais exigente, aprendi a me maquiar, bebi bebida boa, bebi bebida ruim, comi do bom e do pior. Acima de tudo isso e de tudo mais, tive um filho, o que me tornou uma mãe babona e me fez acreditar na verdade dos clichês. Porque, meu amigo, é verdade que o nascimento parece um milagre, que cada descoberta da criança é uma emoção para os pais (“Ele faz bolhas de saliva!”), que não existe amor igual, blablablá-blablablá. Também é verdade que o primeiro ano do bebê “passa assim, ó”. E vem daí o lugar-comum que me pega forte ultimamente.

A vida é curtíssima, quase tão curta quanto as saias das moças na homepage da Globo.com. Até agora, já fiz um bocado de coisas, mas deixei de fazer tantas e fiz tantas outras que eu não queria no tempo em que eu poderia estar fazendo o que queria…Os abraços do meu filho são gostosos demais para serem trocados por atualizações sem fim do feed do Facebook ou percursos inúteis no trânsito. Meu sono é precioso demais para ser comido por programas ruins de TV. Meu estômago é pequeno demais para aguentar escolhas erradas de restaurantes.

Melhor investir nos bons pecados, porque a vida é curta demais para ser apreciada com moderação ou abreviada com excessos. Cabe em uma biografia de 4 mil páginas, em duas datas entre parênteses, na inscrição de uma lápide.

Sabe aquela viagem para Londres? Foi há 8 anos. Sex and the City? Acabou há 10. O almoço de comida ruim? Já foi, está pago. O passeio de bugue nas dunas? Lá se foram 15 anos. E o próximo passeio, você vai querer com ou sem emoção?

Ganhei o selo Regina de qualidade

Estou metida.

Regina é uma cozinheira famosa na família da minhã mãe pela mão boa. Jantar que ela preparava enchia a gente de expectativa. Ai, o molho do assado da carne, o feijão, o cuscuz paulista! E não é que a Rê elogiou a torta de banana que eu preparei outro dia? Falou também que o doce a fez lembrar da minha avó Viquinha, com quem ela trabalhou há muitos anos. Fiquei feliz que só.

Atualmente a Rê faz faxina no meu apartamento. E cansou das panelas. Certa vez a sondei sobre trocar a diária de limpeza por uma diária de cozinha – já pensou ter a geladeira cheia daquelas comidinhas gostosas? Mas ela não quis. Disse que não tem mais paciência. Como tantas estrelas, resolveu renegar a própria arte. O que só faz crescer o mito – e ele ainda vai reaparecer neste blog, porque duas das receitas do caderno da minha mãe vieram da Rê.

A maionese, o pão com picadinho e outras gostosuras da infância da chef Helô Bacellar

Placa na cozinha de Heloisa BacellarA cozinha da casa da chef Heloisa Bacellar é uma viagem no tempo. Não o de nossos avós, pais ou netos, mas um tempo único, ditado por ela. É tanta coisa para olhar, tanta conversa pra conversar, tanta comida pra provar! Uma plaqueta informa as guloseimas do dia: bolo de chocolate, oreos (sim, biscoitos oreo caseiros), pão de mandioca. Espalhadas por ali, estão também as produções de dias anteriores (doce de pêssegos, pão sueco, torradas…) e futuros, como uma carne seca artesanal em processo de dessalgue. Impossível passar lá rapidinho. Ainda mais se o motivo da visita é falar de histórias familiares ligadas a comida gostosa.

O cafezinho acaba, mas não o assunto. Fico sabendo que Helô começou a cozinhar aos 5 anos, com a avó materna, e teve como primeira incumbência descascar abacaxi. Um pitoco de gente com uma faca na mão, compenetrada em executar a tarefa de gente grande. “Era um pouco de ousadia, mas confiavam porque eu era comportada”, diz a chef, hoje com 50 anos, sentada à mesa da cozinha com ares de fazenda de uma casa no bairro paulistano do Pacaembu. Naquela mesma época, ela aprendeu a bater maionese (receita abaixo) – o liquidificador Arno de pote de vidro da avó está disposto na imensa coleção de utensílios que ocupa prateleiras, ganchos e balcões. Em duas gavetas de um armário de mantimentos herdado da bisavó, estão formas e mais formas de empadinha, outra receita que ela adorava fazer com a avó nos finais de semana (“De queijo, camarão, palmito, frango, que eram as mais tradicionais”).

Heloisa Bacellar em sua cozinha
Helô em sua cozinha cheia de comidinhas, traquitanas e histórias

De segunda a sexta, longe da avó, a Helô menina também dava um jeito de desenvolver os dotes culinários, ainda que a mãe não cozinhasse muito. “Eu chegava da escola, largava a pasta, lavava as mãos e ia ajudar a terminar o almoço”, diz. “Ficava amiga de todas as cozinheiras.” De quebra, decorava e cantava as músicas que aprendia no rádio das funcionárias. Também lia livros de culinária e o caderno de receitas da mãe. (Aos 8 anos, começou a montar seu próprio caderno, destruído por um vazamento na cozinha 5 anos depois e aos poucos refeito como um fichário de plástico.)

Mais tarde, Helô passou para as filhas, hoje com 18 e 23 anos, o gosto pela boa comida. “Elas foram criadas na cozinha. Ficavam sentadas naquele banco, desenhando e me vendo cozinhar.” Amigas das meninas levaram um pouco desse aprendizado de lambuja. Uma delas, que até os 7 anos não comia nada além de penne com manteiga (sim, só esse tipo de massa e só com esse molho), ajudou Helô a preparar um bolo e, diante da própria criação, não resistiu a provar uns farelos e depois um pedaço inteiro. Na fazenda da chef, em São Luiz do Paraitinga (interior de SP), a mesma menina colheu, provou e aprovou outros alimentos, como alface e abóbora.


O cardápio do dia e a coleção de formas de empadinhas

Infelizmente nem todo mundo teve em casa alguém que transmitisse tão bem quanto Helô o amor por cozinhar e comer bem (e felizmente nem todo mundo chega ao extremo de passar anos comendo macarrão com molho de nada). Veio dessa constatação o pulo-do-gato que mudou a vida da chef, até então uma advogada apaixonada por gastronomia . Quando o marido, historiador, recebeu uma bolsa para fazer um curso em Paris, ela deu um tempo na carreira e foi estudar gastronomia na prestigiada Le Cordon Bleu. Lá, percebeu que não-alunos pagavam uma bala para assistir a uma aula da escola de chefs e ficavam alucinados com a experiência, ainda que não pudessem de fato participar das atividades. Um ano depois, quando voltou a São Paulo, Helô tinha uma ideia de negócio: “Vou fazer a primeira escola de culinária da cidade mão na massa e voltada para o público amador”.

Em 1999, inaugurou o Atelier Gourmand, onde por anos dividiu seus segredos culinários com alunos de perfis variados: solteiros cansados de comida pronta, aposentados em busca de lazer, mães dispostas a caprichar na comida dos filhos, moças casadoiras que não sabiam fritar um ovo. Depois vieram livros cheios de comidas, fotos e histórias saborosas e o Lá da Venda, misto de armazém e restaurante que serve o melhor pão de queijo de São Paulo, segundo eleição da Veja SP. Durante toda essa história foram – e ainda são – marcantes os pratos da infância, aqueles que a menina Helô amava comer e preparar. Receitas como o bolo de fubá com goiabada da avó, campeão de pedidos do Lá da Venda, ou o pão com picadinho da mãe, publicada no livro Entre Panelas e Tigelas e compartilhada aqui por ser uma das favoritas da chef.

Quem não tem uma Helô em casa pode pelo menos seguir as receitas dela, sempre detalhadas e didáticas.

Maionese
(1 xícara, 15 minutos)

Heloisa Bacellar guarda o liquidificador da avó em que fez suas primeiras maioneses (Foto: Romulo Fialdini)
Helô guarda o liquidificador da avó em que fez suas primeiras maioneses (Foto: Romulo Fialdini)

1 ovo
1 gema
1 colher (chá) de mostarda de Dijon
suco de 1 limão
1 colher (sopa) de cebola picadinha
⅓ de xícara de azeite
⅔ de xícara de óleo de milho, canola ou girassol
sal e pimenta-do-reino

Coloque o ovo, a gema, a mostarda, o limão, a cebola, o azeite, sal e pimenta no liquidificador e bata até misturar. Pela abertura da tampa do copo, sem parar de bater, vá acrescentando aos poucos o óleo em fio até conseguir um molho encorpado e cremoso. Nesse ponto, se quiser, junte 1 ou 2 dentes de alho ou 1 xícara de folhas de ervas frescas e bata até esverdear, ou ainda alguns tomates secos ou umas 2 colheres (sopa) de ketchup para ter maionese rosada. Ajuste o sal e a pimenta, passe para uma tigela, cubra com filme plástico e guarde por até 3 dias na geladeira.

Pão com picadinho
(6 pessoas; 2 horas)

Sanduíche de carne moída e queijo (Foto: Romulo Fialdini)
Comida caseira e gostosa: sanduíche de carne moída e queijo (Foto: Romulo Fialdini)

1 filão de pão de uns 60 cm ou 6 pães franceses
75 g de manteiga
1 cebola grande em cubinhos
1 cenoura em cubinhos
2 talos de salsão em cubinhos
1 dente de alho inteiro
1 kg de carne moída (patinho ou coxão mole)
2 xícaras de leite
2 xícaras de vinho branco seco
600 g de polpa de tomate ou de tomates frescos, sem pele e sem sementes, em cubinhos
3 ovos
300 g de queijo mussarela em fatias finas
óleo vegetal
sal, pimenta-do-reino e noz-moscada

Numa panela média, aqueça 50 g de manteiga e um fio de óleo e doure ligeiramente a cebola. Junte o salsão, o alho e uma pitada de sal e espere murchar. Acrescente a carne, 1 colher (chá) de sal e pimenta e misture separando os pedaços até a carne mudar totalmente de cor. Adicione o leite e a noz-moscada, deixe em fogo alto até evaporar, junte o vinho, deixe ferver por um minuto e acrescente a polpa de tomate. Assim que levantar fervura, abaixe o fogo e cozinhe com a panela semitampada por mais ou menos 1 hora, mexendo de vez em quando e adicionando um pouco de água se secar demais (cozinhar bem devagar é fundamental para que a carne fique macia). Quando a água evaporar e surgir na superfície uma bolha de gordura, acerte o sal, a pimenta e a noz-moscada, descarte o dente de alho e retire do fogo.

Enquanto isso, aqueça mais ou menos 1 litro de água numa panela média, espere ferver, reduza o fogo, mergulhe os ovos na água, conte 10 minutos, escorra, resfrie passando sob água fria, descasque e divida cada um deles em 6 rodelas (ou, se preferir, frite os ovos num pouquinho de manteiga ou de óleo).

Corte uma tampa do pão e reserve. Escave um pouco o centro para tirar parte do miolo, passe um pouco de manteiga no miolo da cavidade e pincele com o leite. Preencha a cavidade com ¾ do picadinho, espalhe por cima as rodelas de ovo cozido, cubra com a mussarela e ponha a tampa do pão de volta no lugar. Coloque o pão num refratário ou numa assadeira e espalhe por cima o restante do molho e o parmesão. Leve ao forno por uns 20 minutos, até que o pão esteja bem quente e com a casca crocante.

Para cozinhar mais:

Nostalgia e coragem para testar a comida materna

Foto: Mariana Weber
O caderno: 204 receitas à minha espera

Um aviso: não sou cozinheira de mão cheia, muito menos chef. Adoro comer, mas cozinho pouco. Me viro. Tenho uma meia dúzia de especialidades que preparo de quando em nunca e me saio muito bem com elas. Mas, no dia a dia, quem mais faz comida em casa é o meu marido. Talvez por ver o gosto que ele tem em cozinhar (e sentir o gosto dos pratos dele), eu muitas vezes me acomodo na cadeira da mesa de jantar. Ou melhor, assumo outras tarefas enquanto ele corta, mistura, peneira, amassa, assa, refoga, frita.

A vida não estaria mal se seguisse assim, mas, há alguns anos, pedi emprestado para minha mãe, Amanda, o caderno de receitas dela. Desde então, ele me espreita na prateleira da sala, esperando que eu coloque em prática alguns dos pratos marcantes da minha infância. As páginas desbotadas contêm comida simples, feita para a família, boa parte dela datada (ou vintage…). Um mundo sem medo do leite condensado e outros atalhos de produtos industrializados (faça uma cobertura para o bolo ou use uma pronta mesmo, sugere uma anotação da minha mãe).

Assim como eu não sou prendada, minha mãe não era uma dona-de-casa que passava seus dias a ver programas de culinária na TV e preparar quitutes. Trabalhava fora, ralava, e o faz até hoje. Quando podia, cozinhava (bem) para os três filhos. Uma comida no geral equilibrada, mas que incluía às vezes doses altas de açúcar e sódio, gordura saturada ou mesmo hidrogenada – durmam com isso, mães que só compram orgânicos.

Eu mesma, que compro orgânicos com frequência mas não tenho medo de banha de porco ou de uma injeção de açúcar de vez em quando, sinto arrepios ao ler alguns trechos do caderno. Patê de salsicha enlatada?! Espero que você nunca tenha feito isso para mim, mãe, porque eu certamente não vou servir isso para o meu filho. Quanto a outros pratos, que vontade de preparar para o pequeno! E pedir ajuda para ele, assim como eu a ajudava – minha caligrafia de criança em algumas páginas lembra também que, certa vez, assumi a tarefa de passar a limpo as receitas que parentes e amigas tinham dado a você em folhas avulsas…

Mas, voltando ao (ugh!) patê de salsicha. Quem sabe se a gente adaptar, usar porco porco em vez de porco processado? Olha que pode ser bom! Está aí um desafio para um futuro post. Outros desafios virão. Para vencê-los, pretendo contar com a ajuda de profissionais, amigos, leitores, do marido bom de fogão e, é claro, da minha mãe, ainda que a algumas centenas de quilômetros de distância. Imagino que às vezes vai dar certo e às vezes não.

Neste blog, também pretendo conversar com chefs para entender como a comidinha da mãe (ou do pai, da avó, do avô, da tia…) marcou suas infâncias e influencia o que eles fazem hoje. E vou dar dicas e pitacos sobre restaurantes, bares, viagens e o que mais me der na telha.

Avante, com muito sabor, uma pitada de nostalgia e bastante coragem para colocar à prova e modificar a comida materna.