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Alcachofra recheada — para desbravar com as mãos e lembrar do mar

Alcachofra recheada

Por Lucila Mantovani*

Eu não me lembro muito bem quando minha avó me ensinou a fazer este prato, mas lembro de eu e meus irmãos engordurados comendo alcachofra e amando tirar aqueles pelinhos para abocanhar a surpresa que viria embaixo… Como aquelas histórias budistas que dizem que do lodo sai a flor mais bonita, sabe? É a vitória-regia, né? É ela que sai do lodo, eu acho. Gosto desse formato de flor que a alcachofra tem, mas que ao mesmo tempo não é delicada, e sim selvagem. Talvez então não tenha sido por acaso, pensando agora, o fato de, ao descascar o caule da alcachofra para fazer o recheio, ter me lembrado do Valdely Kinupp chegando no Instituto de Pesquisa da Amazônia com um saco de palmito de vitória-régia, para nos dar uma aula de Panc — Plantas alimentícias não convencionais. Talvez fosse a semelhança com a vitória-régia — uma analogia que eu fiz na infância — que guiasse minha memória. Agora, voltando à minha avó, me lembro do livro de receita que contém esta aqui, estou com ele em mãos escrevendo este texto. Se chama A Alegria de Cozinhar, 24ª edição — está todo aos pedaços, como ela, que já não consegue nem ficar de pé sozinha mas que continua preocupada em agradar e cuidar de todos. Ou como as alcachofras que insistiam em virar dentro da panela hoje. Não faz muito tempo que ela fez questão que esse livro voltasse para as minhas mãos. Eu havia levado ele ao Canadá comigo quando me casei, mas devolvi a ela quando me separei. Para minha avó, cozinhar é uma forma de amar. Pra mim, é também uma alquimia, magia, ritual. Hoje por exemplo fiz essa receita para tentar me curar de uma gripe e como uma forma de retribuir o carinho que recebi da minha mãe, que passou um tempo morando aqui comigo, fechando um ciclo. Agora, para além do gosto único da alcachofra, gosto mesmo é desta coisa de desbravar a comida com as mãos. E do pretexto pra ingerir um pouco mais de sal, já que vivo longe do mar.

Hoje fiz essa receita para tentar me curar de uma gripe e como uma forma de retribuir o carinho que recebi da minha mãe, que passou um tempo morando aqui comigo, fechando um ciclo”

Ingredientes
Azeite
Alho
2 alcachofras com cabo
1 tomate picado
Azeitonas pretas
Alcaparras
Cheiro-verde
Pimenta-do-reino
Sal
Queijo ralado
3 miolos de pão
Limão

Modo de preparo
Misture tudo numa frigideira  com azeite, começando pelo alho e pelos pedacinhos picados de alcachofra (retirados de dentro do caule). Depois adicione tomate, azeitona, alcaparra, cheiro verde, pimenta, sal, queijo ralado e pão picado. Misture até formar uma pasta/massa.

Abra as pétalas da alcachofra e preencha o espaço no meio com esse recheio.

Posicione as alcachofras em uma panela de forma que fiquem de pé, então encha a panela de água com limão, sal e azeite até cobrir o miolo, mas não chegar à parte que está com o recheio, na superfície. Tampe e deixe cozinhar… O vapor vai fazer o recheio ficar ainda mais coeso e saboroso.

Está pronta quando as pétalas se soltarem com facilidade quando puxadas.

* Lucila é água-lindoiense, caipira. Formada em economia, mas seus afluentes a levaram para as artes. Acabou desembocando na escrita, que acredita ser o seu lugar de criação. É uma das integrantes do Coletivo Ágata.


Para cozinhar mais:

Garbanzo com mandioca: um cozido imigrante

Garbanzo
Descobri recentemente que um parente que eu não conhecia escreveu histórias que eu também não conhecia sobre o ramo espanhol da minha família. Em mais de 400 páginas, Emilio Hoffmann Gomes Junior conta a trajetória de meu trisavô Emilio Batista Gomes, que chegou ao Rio de Janeiro em 1890, aos 17 anos, acompanhado de um irmão de 18 (havia no grupo também uma irmã mais velha e um cunhado, mas este morreu de febre amarela poucos dias após o desembarque e a viúva logo pegou um navio de volta para a Espanha). Emilio e o irmão, Antônio, ficaram no Brasil.

Meu trisavô teve 10 filhos e 37 netos —  entre estes últimos, minha avó Viquinha, dona dos cadernos de que testo as receitas. Na casa de madeira onde nasceu em Irati (Paraná), ela consumia azeite, azeitonas e vinho importados pelo avô. De geração em geração, as heranças espanholas à mesa se diluíram como o vinho misturado com água que as crianças da família antigamente bebiam em dias de festa.

Emilio Batista Gomes com a mulher, Etelvina, e filhos. A segunda criança da esquerda para a direita é minha bisavó Esther
O imigrante espanhol Emilio Batista Gomes com a mulher, Etelvina, e filhos. A primeira criança da esquerda para a direita é minha bisavó Esther (reprodução do livro Veja, Vica)

Minha avó Viquinha é a primeira moça da esquerda nesta foto das bodas de ouro de Emilio Batista Gomes e Etelvina Andrade Gomes (reprodução do livro Veja, Vica)
Minha avó Viquinha é a segunda moça da esquerda nesta foto das bodas de ouro de Emilio Batista Gomes e Etelvina Andrade Gomes, de 1948 (reprodução de Veja, Vica)

Almoço sob pereiras na casa de Emilio e Etelvina em Irati
Almoço sob pereiras na casa de Emilio e Etelvina em Irati (reprodução de Veja, Vica)

A receita abaixo, tirada do livro (e creditada a Dinorah Gomes Marzagão, sobrinha-neta de Emilio Batista Gomes), conta um pouco dessa história transatlântica. Ao tradicional cozido espanhol de grão-de-bico (garbanzo), junta-se a brasileira mandioca, que o deixa ainda mais cremoso. 

Fiz algumas mudanças nos embutidos, tentando usar produtos ibéricos (portugueses, porque foi o que encontrei), e no preparo (cozinhei as carnes junto com o grão-de-bico em vez de separadamente). Ficou um prato substancioso e reconfortante, para comer em várias refeições sem cansar (até porque não dá para fazer em pequena quantidade).

Teste número 66: garbanzo
Fonte – Receita de Dinorah Gomes Marzagão no livro Veja, Vica, de Emilio Hoffmann Gomes Junior
Grau de dificuldade – Médio (um fácil demorado).
Resultado – Quente, saboroso, reconfortante (mas eu poderia ter cozinhado menos o grão-de-bico).

Ingredientes
2 xícaras de grão-de-bico
300 gramas de costela suína defumada
200 gramas de chouriço português
240 gramas de paio português
1 peito de frango sem pele nem osso
2 batatas
250 gramas de mandioca em pedaços
4 dentes de alho amassados ou picadinhos
1 cebola
2 colheres (sopa) de azeite

Modo de preparo
Deixe o grão-de-bico de molho por uma noite. No dia seguinte, escorra a água e espalhe os grãos sobre um pano limpo. Dobre o pano e massageie os grãos delicadamente até que as cascas se soltem.

Retire as peles dos embutidos e pique todas as carnes em pedaços regulares. Corte também as batatas e a mandioca.

Em uma panela grande, refogue o alho e a cebola no azeite. Junte o grão-de-bico, a costela e um litro de água. Espere amolecer um pouco, depois junte as batatas, a mandioca, o chouriço, o paio e, por último, o frango.

Regue com azeite ao servir. Acompanha arroz branco ou um bom pão.

Garbanzo com arroz

Para cozinhar mais:

Espinafre com requeijão gratinado

espinafre com requeijãoSegunda-feira, vamos de básico com um gostinho especial. Esta receita eu tirei do caderno da minha mãe e fiz, em parte, com ingredientes orgânicos (o espinafre e o requeijão, comprados na feirinha do Parque da Água Branca). Servi como acompanhamento de um frango refogado e, no dia seguinte, com uma carne grelhada. Comida simples, do conforto, com jeito de casa de mãe mesmo — como a que eu comia na casa da minha mãe e agora faço para o meu filho.

Teste número 59: espinafre com requeijão
Fonte – Caderno de receitas da minha mãe.
Grau de dificuldade – Fácil.
Resultado – Um acompanhamento reconfortante. Mas podia ter ficado menos líquido. Da próxima vez, vou fazer sem leite.

Ingredientes
½ pote (cerca de 100 gramas) de requeijão cremoso
1 maço grande de espinafre picado
½ cebola pequena picada
1 colher (sopa) de manteiga
Sal
Pimenta-do-reino
Um pouco de leite (opcional)
Parmesão

Modo de preparo
Refogue a cebola na manteiga. Ainda mexendo, junte o espinafre, o sal, a pimenta, o requeijão e, se quiser, o leite (mas eu achei que, com leite, ficou um pouco líquido demais, pois o espinafre solta água).

Transfira para uma assadeira, rale queijo parmesão por cima e leve ao forno para gratinar.

A comida leve e saborosa da mãe que nunca engorda

 Andrea Kaufmann com a mãe, Anita, e a filha Ana
Andrea Kaufmann com a mãe, Anita, e a filha Ana

Este relato faz parte de uma série de depoimentos sobre delícias e histórias da cozinha de mãe

*Por Andrea Kaufmann

Minha mãe é escultora, minha avó, pintora. Eu nunca pintei, nunca esculpi, o que sempre gostei foi de cozinhar. Com minha mãe, aprendi a fazer uma comida leve. Na minha infância, ela cozinhava mais nos finais de semana, quando preparava pratos chiques e sofisticados, com poucos ingredientes e combinações. Amo o frango assado dela. E os cremes de entrada então? Tem de palmito, de couve-flor… Os molhos de salada são os melhores do mundo. Tem um que começa com ovo cozido amassado com garfo e misturado a mostarda, depois entram azeite, emulsionado como em uma maionese, e um pouco de vinagre — eu nunca acerto a acidez que ela consegue, sempre fica a mais ou a menos.

Algumas receitas da minha mãe, levei para o restaurante, como as milanesas e a vitela ao limone, que talvez seja o prato de que mais gosto. Também adaptei sardinha marinada em vinagre com creme e cebola, receita de origem judaica. Na minha versão, a sardinha passa por uma cura seca, com sal, e o creme vai por cima, como um chantilly avinagrado. Engraçado que minha mãe não faz muito peixe, e eu adoro, sou meio foca. Essa é uma das diferenças no nosso paladar. Outra é que sou superpimenteira e ela é contra pimenta. De resto, ela adora a minha comida. Se não gosta de alguma coisa, não fala…

Sardinha com creme de Andrea Kaufmann

Um dos ensinamentos que recebi da minha mãe foi o de que qualquer pessoa pode entrar na cozinha e fazer alguma coisa fácil, sem medo, sem estresse. Tem também uma coisa bem europeia, de todo dia ir ao mercado comprar os ingredientes. A cozinha dela era mais de fim de semana, porque nos outros dias quem preparava a comida (muito boa, aliás) era uma empregada mineira, que eu adorava observar. Geralmente a refeição tinha arroz, feijão, um grelhado, legumes, salada. Para minha mãe, carne e salada. Por isso ela é magra. A vida inteira pesa 50 quilos!

*Andrea Kaufmann é chef, filha de Anita e mãe de Isadora, 1, Ana, 12,  e Matias, 17.

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Quando o bacalhau com dendê encontra o arroz japonês

Shoichi Iwashita e a mãe, Irene
Shoichi e a mãe, dona Irene

Este relato faz parte de uma série de depoimentos sobre as delícias e as histórias da cozinha materna

*Por Shoichi Iwashita

De um pai xintoísta/budista (no Japão, todo mundo pratica rituais das duas religiões) e de uma mãe baiana iniciada no candomblé e hoje espírita, nascemos eu e minha irmã. Filha mais velha de nove irmãos, nascida no interiorzão da Bahia, Irene, minha mãe, era responsável por cuidar da casa, de todos os irmãos e da cozinha, além de ajudar a mãe nos partos dos filhos mais novos. As dificuldades financeiras eram enormes. Talvez por isso, aqui em casa a geladeira precisa estar sempre abarrotada e dona Irene simplesmente não consegue fazer pouca comida (heranças das dificuldades passadas marcadas na alma, costumo dizer para ela). Não peça para ela fazer o seu prato, mesmo que você lhe diga que está sem fome e quer “só um pouquinho”. Acho que, assim como acontece com todas as pessoas que gostam de cozinhar, ato indissociável da generosidade de compartilhar não só a comida, mas prazer, felicidade, convívio, sua satisfação é ver todos comendo muito. Pratos e panelas vazias.

Um dos meus pratos favoritos da cozinha da dona Irene é o bacalhau com batata e azeite de dendê e leite de coco, que a gente come com um pirão feito do caldo e com arroz japonês (aquele só cozido, sem tempero algum; a untuosidade do azeite e o pequeno formato arrendondado dos grãos de arroz japonês – o nihonmai – fazem com que a gente tenha no prato um risoto improvisado). E a receita, além de saborosíssima, não é nada difícil.

Esse bacalhau, com sabores da Bahia, de Angola, com um pé no terreiro, é o prato preferido do meu pai e de todos os seus amigos japoneses que limpam as panelas quando vêm jantar aqui”

Com um quilo de postas altas de bacalhau dessalgado, você pode usar meio quilo de batatas cortadas ao meio. Pique duas cebolas, três tomates, dois pimentões, uma xícara de azeitonas, um maço de coentro, salsa e cebolinha, e misture tudo. Numa panela grande, forre o fundo com uma camada de tempero, uma camada de batata e, por cima, uma de bacalhau. Vá alternando (mais uma camada de tempero, uma de batata e mais uma de bacalhau). Por último, acrescente 200 ml leite de coco e 200 ml de azeite de dendê. Nada mais. Feche a panela e ligue o fogo. Aí, é só observar o ponto do bacalhau e o das batatas.

Se o sabor do bacalhau com todos esses temperos é superlativo, eu adoro o pirão feito com o caldo que equilibra os sabores na boca. Para fazer o pirão, é só coar um pouco do caldo numa panela pequena. Molhe uma xícara de farinha de mandioca com água e misture com o caldo. Ligue o fogo e mexa sempre até que a massa comece a se desprender da panela.

Esse bacalhau, com sabores da Bahia, de Angola, com um pé no terreiro, também é o prato preferido do meu pai e de todos os seus amigos japoneses que limpam as panelas quando vêm jantar aqui, para a felicidade de dona Irene. E aí, ela fala toda orgulhosa: “Viu, comeram tudo e não passaram mal com dendê!”.

*Shoichi Iwashita, filho de mãe baiana e pai japonês, é editor do site Simonde.

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