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O Brasil bem pessoal de Marcelo Corrêa Bastos (e o cordeiro com maniva do novo Vista)

Vista restaurante _ chef Marcelo Correa Bastos _ foto Rubens Kato

Marcelo Corrêa Bastos era um menino que comia de tudo. Nos almoços de sábado, quando os pais dele se reuniam com amigos em um restaurante tradicional de Londrina (PR), o futuro chef só ficava com as crianças até a refeição ser servida. Então deixava para trás a mesa infantil, abastecida de pizza, para dividir com os adultos os pratos de um bufê. “Era supervariado: tinha joelho de porco, arroz de bacalhau… Não fazia sentido nenhum, mas eu gostava de comer coisas diferentes”, lembra Marcelo, enfatizando que nunca teve um prato favorito – nem hoje. Mas tem, claro, suas preferências. E as transformou em uma cozinha brasileira pessoal, que ora segue tradições, ora brinca com elas. Perguntado sobre o conceito que une os menus do seu primeiro restaurante, o Jiquitaia, e o recém-inaugurado Vista, responde rápido: “É a minha cozinha. Só a moldura é diferente”.

E que moldura. Instalado na cobertura do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), o novo restaurante se abre para o Parque do Ibirapuera, com um visual que impressiona de dia ou de noite. Durante cinco décadas ocupado pelo Detran, o prédio do MAC já foi o lugar aonde nenhum paulistano queria ir, mas agora tem potencial para se tornar o novo lugar aonde todo mundo quer ir: pelo acervo do museu, pela arquitetura do edifício projetado por Oscar Niemeyer e pela comida de Marcelo, direta como sua conversa.

O cardápio é quase uma extensão do Jiquitaia, restaurante que, quando foi inaugurado, em 2012, tinha a proposta de fazer um almoço baseado na cozinha comercial paulistana, com pratos distribuídos por dias da semana: segunda-feira de virado à paulista, terça de dobradinha e por aí vai. Pesou na escolha desse conceito a comida da infância de Marcelo, preparada pela mãe, que por sua vez cresceu comendo todo dia nos restaurantes dos pais no interior do Paraná.Em casa o cardápio era parecido com esses comerciais tradicionais de São Paulo”, lembra o chef. “Um dia era feijoada, no outro dia era peixe, no outro uma massa, e sempre uma saladona…”

Já a noite do Jiquitaia desde o início foi outra história. “No jantar, a ideia era explorar as cozinhas brasileiras de um jeito mais livre, da forma que eu quisesse, sem muito rigor, sem ser muito didático.”

Aos poucos, os pratos da noite foram invadindo o dia. E Marcelo foi se firmando como um nome de peso na cozinha brasileira, com preparações como arroz de pato com magret de pato e tucupi ou moqueca baiana. Moqueca baiana à maneira do chef: ele lembra com bom humor do pito que tomou de um baiano inconformado com a receita.

Vieram filas, veio um bar no andar superior, mas a ascensão era até então discreta como o sobrado que o Jiquitaia ocupa na rua Antônio Carlos, na região do Baixo Augusta. Veio o Vista para chacoalhar tudo. Marcelo foi convidado a entrar no empreendimento pelo grupo que ganhou a licitação para montar um complexo gastronômico no MAC-USP. O projeto é superlativo: na cobertura de 2.400 m² de área, haverá, além do restaurante de ampla cozinha envidraçada, dois bares (um deles, o Obelisco, já inaugurado). No mezanino do museu também funciona um café.

Vista Ibirapuera _ fotos Rubens Kato

Agora o menino que comia de tudo pode servir um pouco mais de tudo o que queria e não podia. Enquanto o Jiquitaia tem moqueca baiana, o Vista tem moqueca capixaba – e, diferente da prima baiana, a capixaba passou por um teste com um local, amigo do chef. Menos tradicionais são os croquetes de pupunha com maionese de pimenta de cheiro, o peixe carapau selado com leite de amendoim, azedinha e cará cru ou os raviólis recheados de abóbora, batata-doce e pamonha de milho servidos em caldo de cogumelos. Sucesso de vendas, o bacalhau ao forno com emulsão do próprio caldo e azeite levou o chef a pensar em fazer um escondidinho, receita da mãe, para aproveitar as aparas do peixe.

Já no carré de cordeiro com maniva (folha de mandioca moída e cozida longamente para eliminar toxinas) e banana-da-terra, a cozinha brasileira encontra a de Camarões. O chef criou a receita depois de provar no restaurante africano Biyou’Z, na região central de São Paulo, um prato com folha de mandioca –  o ingrediente comum no Norte do Brasil também é usado na culinária de países do outro lado do Atlântico.

Para experimentar em casa uma amostra desse Brasil bem pessoal de Marcelo, seguem as instruções dele para fazer o cordeiro.

Vista restaurante _ Cordeiro, molho de maniva com especiarias e banana da terra grelhada _ foto Rubens Kato

RECEITA

Cordeiro com molho de maniva e banana-da-terra

Rendimento 4 porções

Ingredientes
1 kg de carré de cordeiro
2 bananas-da-terra
10 minicebolas
azeite para untar a carne
Para a marinada:
200 ml de vinho branco
800 ml de água
35 g de sal
10 g de açucar
1 dente de alho
5 g de pimenta do reino
1 pimenta de cheiro
1 folha de louro
1 raiz de coentro

Para o molho:
500 g de maniva moída e pré-cozida*
80 g de coentro (inteiro com raiz)
10 g de gengibre ralado
20 g de alho
30 g de pimenta de cheiro
30 ml de dendê
50 ml de azeite
2 g de cominho
10 g de gergelim
100 ml de demi glace (veja aqui como fazer)

*Em São Paulo, comprei maniva no Mercado de Pinheiros, no box Amazônia do Instituto Atá.

Modo de preparo
Bata todos os ingredientes da marinada no liquidificador e coe. Marine os carrés por 8 horas, seque e deixe descansar por, pelo menos, três horas.

Para o molho: refogue no azeite com dendê todos os ingredientes, exceto o demi glace e a maniva; deixe que murchem bem, adicione a maniva e o demi glace, deixe ferver, processe tudo, volte ao fogo e dê o ponto (deve ser pastoso, mas ainda fluido, algo entre um pesto e um molho espesso).

Grelhe os carrés untados em um pouco de azeite até que estejam ao ponto. Deixe descansar por alguns segundos,  enquanto isso, doure as mini cebolas e as fatias de banana (de aprox. 5mm) numa frigideira antiaderente. Sirva tudo sobre o molho aquecido.

Fotos: Rubens Kato / divulgação

Para ler e cozinhar mais:

Saudade do coentro

Caldo de peixe com espuma de coentro e socol (embutido feito na serra do Espírito Santo)
Caldo de peixe com espuma de coentro e socol (embutido feito na serra do Espírito Santo)

Uma das boas lembranças da minha adolescência no Espírito Santo é a da moqueca capixaba fumegante que devorávamos depois de passar horas na praia alimentando a fome. Recém-chegada de São Paulo, minha família inicialmente torcia o nariz para a floresta de coentro que cobria as panelas de barro, mas logo se acostumou (até porque não tinha opção) e passou a apreciar a vegetação local.

Hoje, estou de volta a São Paulo. O coentro, que agora adoro, tempera as imagens dos fins de semana quando meus pais e os três filhos se aboletavam no carro para explorar a terra para onde nos transferimos. Parte da minha família continua lá. Para matar a saudade da comida, fui ao lançamento do Menu Capixaba no restaurante Brasil a Gosto, em São Paulo (atualização: o restaurante se transformou no Instituto Brasil a Gosto e abre só para eventos).

Compartilho abaixo duas receitas da chef Ana Luiza Trajano com inspiração na culinária do Espírito Santo. Para matar a saudade dos pais e da irmã (e dos pratos feitos do jeito tradicional, bem mais “coentrados”), já estou com as passagens compradas.

Caldo de peixe com espuma de coentro e crocante de socol

Ingredientes
10 g de alho
10 ml de óleo de urucum
450  ml de caldo de peixe
Sal a gosto
6 g de pimenta dedo-de-moça
20 g de coentro
10 ml de caldo de legumes
20 g de socol (um embutido preparado na serra do Espírito Santo; se não estiver no Espírito Santo e não achar o produto, sugiro usar presunto cru)

Modo de preparo
Em uma panela, doure o alho no óleo de urucum e coloque o caldo de peixe deixando-o reduzir 1/3 e ficar cremoso. Tempere com pouco sal e adicione a pimenta dedo-de-moça. Sirva quente com a espuma de coentro e o crocante de socol.

Para fazer a espuma de coentro, coloque em uma tigela o caldo de legumes frio e o coentro e bata com um mixer até incorporar os dois. Coloque a mistura em um sifão e reserve. No momento de servir, agite o sifão e coloque a espuma por cima do caldo de peixe.

Para o crocante de socol, corte o socol em fatias bem finas, espalhe em uma assadeira e leve ao forno a 160º C por 6 minutos, virando no meio do tempo. Quebre em pedaços bem pequenos e sirva dentro e por cima do caldo de peixe.

Moqueca capixaba

Na versão da chef Ana Luiza Trajano para a moqueca capixaba, o pirão vem na mesma panela que o peixe
Na versão da chef Ana Luiza Trajano, a moqueca leva coentro e cebolinha

Ingredientes
720 g de filé de abadejo
60 ml de azeite
20 g de sal temperado
40 ml de óleo de urucum
20 g de alho batido
1,5 l de caldo de peixe
80 g de cebola cortada em tirinhas
80 g de tomate cortado em tirinhas
30 g de cebolinha verde picada
30 g de coentro picado
2 pimentas dedo-de-moça
2 bananas-da-terra
Sal a gosto

Para o pirão
25 ml de óleo de urucum
15 g de alho
40 g de cebola picada
300 g de aparas de peixe
100 ml de caldo de peixe
60 g de farinha de mandioca
Sal a gosto

Modo de preparo
Tempere o peixe de véspera com o azeite e o sal temperado. Reserve.

Em uma panela, doure o alho em óleo de urucum e adicione o caldo de peixe, deixando-o reduzir 1/3. Em uma panela de barro, faça uma cama com metade da cebola e do tomate, coloque os filés de peixe por cima, cubra com o restante do tomate e da cebola, o coentro e a cebolinha picados. Adicione o caldo de peixe reduzido e deixe em fogo médio até que o peixe cozinhe. Coloque as bananas da terra cortadas em anéis transversais, acerte os temperos e sirva com o pirão de peixe.

Para o pirão, em uma panela média, doure o alho e a cebola no óleo de urucum. Adicione as aparas e o caldo de peixe, mexendo com um fouet para que os pedaços de peixe se quebrem. Quando cozidos, adicione a farinha de mandioca sem parar de mexer até que a farinha cozinhe e o pirão fique uniforme. Acerte o sal e sirva com a moqueca.

Receita de barreado da chef Ana Luiza Trajano

Barreado: carne cozida até desmanchar típica do Paraná, terra da minha mãe (foto: divulgação)
(Foto: divulgação)

Nas minhas lembranças de infância, barreado é o prato que eu não comi na viagem que eu não fiz porque fiquei de castigo. O ponto alto da temporada em Curitiba, preenchida por idas a casas de parentes da minha mãe, seria o passeio de trem até Morretes, onde provaríamos a carne cozida em uma panela de barro selada com massa de farinha. Mas nós nunca chegamos à estação. Um dia antes, na última das visitas familiares, eu e meus dois irmãos estávamos com a macaca. Corremos, pulamos, escalamos sofás, deslizamos em tapetes, rimos quando minha mãe, envergonhada diante da tia anfitriã, pedia para pararmos. O último recurso materno foi decretar que a viagem do dia seguinte estava cancelada.

Até hoje eu não fiz aquele passeio de trem. Mas já comi barreado uma porção de vezes, no Paraná e em São Paulo. Adoro os sabores concentrados e misturados pelo cozimento, a carne macia, o pirão de acompanhamento, o ritual de selar o encaixe da tampa com a panela para criar pressão.

Recentemente conheci o barreado preparado por Ana Luiza Trajano, do restaurante paulistano Brasil a Gosto, e pedi a receita para ela ( (o restaurante não está mais em funcionamento; hoje o que existe é o Instituto Brasil a Gosto). Eu não podia deixar o ano acabar sem compartilhar aqui o passo-a-passo dessa gostosura da terra da minha mãe. O prato faz parte do Menu Paraná, que a chef criou depois de uma viagem de pesquisa pelo sul do País e serve até domingo (21/12).

Barreado com pirão e banana-da-terra

Rendimento: 8 porções

Ingredientes
3 kg coxão mole
500 g bacon
4 cebolas
2 folhas de louro
5 ramos de tomilho
2 ramos de estragão
1 maço de manjericão
1 maço de manjerona
1 maço de cebolinha
1 maço de salsinha
3 ramos de sálvia
1 ramo de hortelã
Sal e pimenta-do-reino a gosto
150 ml de cachaça

800 g de farinha de mandioca

5 bananas-da-terra
300 ml de cachaça

Modo de preparo
(O barreado tradicional é cozido em uma panela de barro por 17 horas, mas no restaurante a chef o cozinha na panela de pressão por 3 horas. Depois o serve em panelas menores seladas com farinha só para manter o ritual de quebrar o lacre.)

Corte a carne em cubos grandes, corte o bacon em tiras bem finas e pique a cebola e as ervas (exceto o louro).

Forre o fundo da panela com lâminas de bacon. Em seguida, coloque uma camada de carne e, depois, uma camada generosa de cebola. Salpique as ervas. Repita a operação, ponha por último as folhas de louro e finalize com a última camada de bacon. Adicione os 150 ml de cachaça e cubra com água até o bacon de cima boiar. Cozinhe na panela de pressão por três horas em fogo médio. Depois de pronto, mexa bem para desmanchar a carne.

Para o pirão
Na hora de servir, espalhe um pouco de farinha de mandioca no fundo do prato e acrescente um pouco do caldo do barreado.

Para as bananas
Corte as frutas na transversal e as cozinhe no vapor de 300 ml de cachaça.