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Sobre pequenas e grandes perdas

Eu esqueço, tu esqueces, ele esquece, nós esquecemos.

Alguns ainda lembram, mas são poucos. Logo esquecerão também. Ou esqueceremos deles. Então restará o vazio.

Eu e você, às vezes, sentiremos o vácuo. Uma nostalgia vaga por algo que já não podemos repor. Já soubemos, não sabemos mais.

O gosto de uma fruta.

A risada da mãe com a travessa nas mãos.

O girar da colher.

Existem as grandes tragédias, existem as perdas da nossa humanidade privada.

Cadernos de receitas sem herdeiros se desfazem, é da natureza do papel.

A mãe morre, na dor que retorna ao filho vem o arrependimento por nunca ter aprendido a preparar o molho, a farofa, o doce de fruta. Desapareceram com quem os fazia. Os filhos dos filho nunca vão conhecer os sabores. Talvez até passem pela fruta, pendente de árvores sobreviventes na cidade, mas não a reconhecerão como fruta. Aquela natureza já não lhe diz mais nada. Por que mesmo está ali?

Um museu inteiro queima, choramos, lamentamos. Por que mesmo não estávamos ali?

Parte de nós estava no Louvre. Em 2017, mais brasileiros visitaram o museu de Paris do que o Museu Nacional no Rio, e ao lermos a notícia nos revoltamos. Eu já fui ao Louvre e nunca fui ao Museu Nacional. Agora que o prédio ardeu, sinto vergonha e falta do que não vi. Mas já não adianta, o museu não está mais lá, pelo menos não como era. (Assim como o Museu do Ipiranga, interditado desde 2013, para o meu filho é só um jardim para piquenique.)

Sobreviveu ao fogo do Museu Nacional o meteorito de Bendegó, que Dom Pedro II, antigo morador da Quinta da Boa Vista, mandou trazerem do sertão da Bahia para o integrar a coleção do museu. O imperador também colecionava cardápios de banquetes nacionais e estrangeiros, embora gostasse mesmo era uma de uma boa canja. Guardados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e reunidos no livro Os Banquetes Do Imperador, os impressos ajudam a contar um pouco de nossa história gastronômica. Ou de nossa história, ponto.

Os Banquetes do Imperador

Se brasileiros hoje vão mais ao Louvre do que ao Museu Nacional, no século 19 a nobreza local comia pratos à moda europeia, descritos em menus em francês, com alguns ingredientes nacionais: galantine de jacu, macucos sur canapés flanqués de sabiá e badejo bouilli a la orly são alguns dos exemplos citados no livro. Tapioca fazia sucesso em refeições no exterior, com várias menções, mas era citada em apenas um dos cardápios brasileiros, em um pudding de tapioca. Feijoada, ou melhor, feijuade aparecia no almoço de de um navio francês que fazia a rota da América do Sul.

Hoje há uma leva de chefs criando novos banquetes com ingredientes nativos, resgatando e aprimorando técnicas. Claro, preencheremos o tempo com outras histórias. Mas quantas importantes não perdemos no caminho?

Salve a feijuade, ops, feijoada. Salve as receitas de família. Salve nossa história. Desculpe o desânimo.

Menus do livro Os Banquetes do Imperador

Para saber mais:

Moqueca capixaba – com um montinho ou um montão de coentro

Moqueca capixaba (Foto: O Caderno de Receitas)

Não existe moqueca capixaba sem coentro. Sem ele, você pode até fazer um bom prato, mas vai ter que chamá-lo de outra coisa. Talvez peixada, que é o jeito que o povo do Espírito Santo denomina a receita de peixe alheia: “Moqueca, só capixaba, o resto é peixada”, dizem cartazes nos restaurantes locais – pesquisando para este post, descobri que o bordão foi criado nos anos 1970 pelo jornalista Cacau Monjardim, então secretário de turismo capixaba.

Meu regionalismo de paulistana que passou a adolescência em Vitória não chega ao ponto de desdenhar o dendê e o leite de coco da moqueca baiana. Cada um que puxe a sardinha (ou o badejo ou o robalo…) pro seu lado, eu adoro os dois pratos. Tanto o baiano, intenso e rico em sabores de herança africana, quanto o capixaba, mais leve e fresco, em que se sobressaem o urucum indígena e o coentro herdado dos portugueses (presente também na versão baiana, mas aqui reinando).

A rivalidade interestadual entre moquecas é uma bobagem inevitável como tantas rixas entre vizinhos: a grama do outro ou está mais verde ou está tão feia que estraga a vista. De fora da disputa, ou quase, fica fácil para mim ver a suculência das duas. Mas a receita que adotei como familiar é a combinação capixaba de urucum e coentro.

Em São Paulo (e no mundo), muita gente torce o nariz para o coentro. Há quem atribua a aversão a fatores culturais: você teria que crescer comendo coentro para gostar dele. Outros citam uma origem genética: para parte da população, o cheiro do coentro remete a sabão ou percevejo (seu nome científico, Coriandrum sativum, deriva da palavra grega para o inseto, koris).

Não sou capaz de vestir o nariz dos outros, mas sei que na minha família paulista/paranaense a relação com o coentro se transformou com o tempo. Quando meu pais se mudaram de São Paulo para Vitória, eram do partido da salsinha. Nos restaurantes capixabas, tentavam em vão pedir moquecas livres de coentro: o máximo que conseguiam era uma vegetação rasteira no lugar de uma farta floresta da erva. Até que se renderam. Aprenderam a gostar do tempero local, e a usá-lo mesmo em casa.

Outro dia, de férias em Vitória, foi minha vez de preparar a moqueca. Na verdade, minha primeira vez (embora eu já tenha publicado aqui uma receita do restaurante Curuca). O peixe escolhido no mercado da Vila Rubim foi um dourado, de carne firme como o prato pede. Na feira da Praia do Canto, comprei tomate, cebola, farinha de mandioca (para o pirão) e urucum. O vendedor de temperos, seu Lourival Batista, me aconselhou a aquecer as sementinhas de urucum em óleo e depois coar o líquido – como opção, havia também o colorau, o pó avermelhado que tem uma mistura de urucum e outros elementos, como fubá de milho ou farinha de mandioca.

O vendedor de temperos Lourival Batista (foto: O Caderno de Receitas)
Seu Lourival, o homem do colorau e das sementes de urucum

Minha mãe comprou o coentro:

– Dois maços está bom, filha?

Está. Na verdade, usei um. Quem quiser que use mais ou menos. Mas ele é necessário. Assim como a panela de barro, que mantém o calor do prato fumegante. Se puder comprar uma das paneleiras do bairro de Goiabeiras, melhor ainda. Se não puder, que pelo menos seja uma panela larga o suficiente para acomodar todas as postas de peixe.

Também não pode faltar pirão, essa maravilha do gosto e do aproveitamento de todos os pedaços do peixe. “Pirão é sinônimo da própria alimentação brasileira”, diz Luís da Câmara Cascudo em História da Alimentação no BrasilNo livro está também o ditado:

Sem pirão,
Não vai não!

RECEITA

Ingredientes
1 limão
Sal
Pimenta-do-reino
2 colheres (sopa) de sementes de urucum
Azeite
500 gramas de cebola picada
500 gramas de tomate em cubos
1 quilo de postas de peixe de carne firme, como robalo, badejo ou dourado
Coentro fresco picado

Para o pirão
Azeite
150 gramas de cebola picada
150 gramas de tomate em cubos
1 xícara de farinha de mandioca
Cabeça e rabo de peixe
Sal
Coentro

Modo de preparo
Tempere o peixe com limão, sal e pimenta e deixe marinar na geladeira por pelo menos uma hora (aproveite e faça o mesmo com os pedaços que serão usados no pirão).

Em uma panela, aqueça o urucum rapidamente no azeite (para duas colheres de semente, usei cerca de 1/3 de xícara de azeite). O vermelho da semente logo vai colorir o óleo (foto abaixo). Desligue o fogo e espere esfriar para então coá-lo.

Sementes de urucum no azeite

Na panela de barro, refogue a cebola no azeite. Adicione umas duas colheres de sopa do azeite com urucum ao refogado. Junte os tomates e espere que amoleçam um pouco. Junte um pouco do coentro.

Disponha as postas de peixe no refogado, sem sobrepô-las. Tempere com sal e tampe a panela.

Desligue o fogo quando as postas de peixe estiverem cozidas, mas ainda firmes (para mim demorou uns 15 minutos; lembre-se que o peixe ainda vai cozinhar um pouco mais, já que a panela de barro retém bem o calor).

Espalhe mais coentro sobre a moqueca antes de servir.

Modo de preparo do pirão
Siga os mesmos procedimentos da moqueca. No final, retire os pedaços de peixe e despeje aos poucos a farinha, mexendo bem para não empelotar o pirão. Se precisar, acrescente água quente.

Para ler e cozinhar mais:

O Brasil bem pessoal de Marcelo Corrêa Bastos (e o cordeiro com maniva do novo Vista)

Vista restaurante _ chef Marcelo Correa Bastos _ foto Rubens Kato

Marcelo Corrêa Bastos era um menino que comia de tudo. Nos almoços de sábado, quando os pais dele se reuniam com amigos em um restaurante tradicional de Londrina (PR), o futuro chef só ficava com as crianças até a refeição ser servida. Então deixava para trás a mesa infantil, abastecida de pizza, para dividir com os adultos os pratos de um bufê. “Era supervariado: tinha joelho de porco, arroz de bacalhau… Não fazia sentido nenhum, mas eu gostava de comer coisas diferentes”, lembra Marcelo, enfatizando que nunca teve um prato favorito – nem hoje. Mas tem, claro, suas preferências. E as transformou em uma cozinha brasileira pessoal, que ora segue tradições, ora brinca com elas. Perguntado sobre o conceito que une os menus do seu primeiro restaurante, o Jiquitaia, e o recém-inaugurado Vista, responde rápido: “É a minha cozinha. Só a moldura é diferente”.

E que moldura. Instalado na cobertura do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), o novo restaurante se abre para o Parque do Ibirapuera, com um visual que impressiona de dia ou de noite. Durante cinco décadas ocupado pelo Detran, o prédio do MAC já foi o lugar aonde nenhum paulistano queria ir, mas agora tem potencial para se tornar o novo lugar aonde todo mundo quer ir: pelo acervo do museu, pela arquitetura do edifício projetado por Oscar Niemeyer e pela comida de Marcelo, direta como sua conversa.

O cardápio é quase uma extensão do Jiquitaia, restaurante que, quando foi inaugurado, em 2012, tinha a proposta de fazer um almoço baseado na cozinha comercial paulistana, com pratos distribuídos por dias da semana: segunda-feira de virado à paulista, terça de dobradinha e por aí vai. Pesou na escolha desse conceito a comida da infância de Marcelo, preparada pela mãe, que por sua vez cresceu comendo todo dia nos restaurantes dos pais no interior do Paraná.Em casa o cardápio era parecido com esses comerciais tradicionais de São Paulo”, lembra o chef. “Um dia era feijoada, no outro dia era peixe, no outro uma massa, e sempre uma saladona…”

Já a noite do Jiquitaia desde o início foi outra história. “No jantar, a ideia era explorar as cozinhas brasileiras de um jeito mais livre, da forma que eu quisesse, sem muito rigor, sem ser muito didático.”

Aos poucos, os pratos da noite foram invadindo o dia. E Marcelo foi se firmando como um nome de peso na cozinha brasileira, com preparações como arroz de pato com magret de pato e tucupi ou moqueca baiana. Moqueca baiana à maneira do chef: ele lembra com bom humor do pito que tomou de um baiano inconformado com a receita.

Vieram filas, veio um bar no andar superior, mas a ascensão era até então discreta como o sobrado que o Jiquitaia ocupa na rua Antônio Carlos, na região do Baixo Augusta. Veio o Vista para chacoalhar tudo. Marcelo foi convidado a entrar no empreendimento pelo grupo que ganhou a licitação para montar um complexo gastronômico no MAC-USP. O projeto é superlativo: na cobertura de 2.400 m² de área, haverá, além do restaurante de ampla cozinha envidraçada, dois bares (um deles, o Obelisco, já inaugurado). No mezanino do museu também funciona um café.

Vista Ibirapuera _ fotos Rubens Kato

Agora o menino que comia de tudo pode servir um pouco mais de tudo o que queria e não podia. Enquanto o Jiquitaia tem moqueca baiana, o Vista tem moqueca capixaba – e, diferente da prima baiana, a capixaba passou por um teste com um local, amigo do chef. Menos tradicionais são os croquetes de pupunha com maionese de pimenta de cheiro, o peixe carapau selado com leite de amendoim, azedinha e cará cru ou os raviólis recheados de abóbora, batata-doce e pamonha de milho servidos em caldo de cogumelos. Sucesso de vendas, o bacalhau ao forno com emulsão do próprio caldo e azeite levou o chef a pensar em fazer um escondidinho, receita da mãe, para aproveitar as aparas do peixe.

Já no carré de cordeiro com maniva (folha de mandioca moída e cozida longamente para eliminar toxinas) e banana-da-terra, a cozinha brasileira encontra a de Camarões. O chef criou a receita depois de provar no restaurante africano Biyou’Z, na região central de São Paulo, um prato com folha de mandioca –  o ingrediente comum no Norte do Brasil também é usado na culinária de países do outro lado do Atlântico.

Para experimentar em casa uma amostra desse Brasil bem pessoal de Marcelo, seguem as instruções dele para fazer o cordeiro.

Vista restaurante _ Cordeiro, molho de maniva com especiarias e banana da terra grelhada _ foto Rubens Kato

RECEITA

Cordeiro com molho de maniva e banana-da-terra

Rendimento 4 porções

Ingredientes
1 kg de carré de cordeiro
2 bananas-da-terra
10 minicebolas
azeite para untar a carne
Para a marinada:
200 ml de vinho branco
800 ml de água
35 g de sal
10 g de açucar
1 dente de alho
5 g de pimenta do reino
1 pimenta de cheiro
1 folha de louro
1 raiz de coentro

Para o molho:
500 g de maniva moída e pré-cozida*
80 g de coentro (inteiro com raiz)
10 g de gengibre ralado
20 g de alho
30 g de pimenta de cheiro
30 ml de dendê
50 ml de azeite
2 g de cominho
10 g de gergelim
100 ml de demi glace (veja aqui como fazer)

*Em São Paulo, comprei maniva no Mercado de Pinheiros, no box Amazônia do Instituto Atá.

Modo de preparo
Bata todos os ingredientes da marinada no liquidificador e coe. Marine os carrés por 8 horas, seque e deixe descansar por, pelo menos, três horas.

Para o molho: refogue no azeite com dendê todos os ingredientes, exceto o demi glace e a maniva; deixe que murchem bem, adicione a maniva e o demi glace, deixe ferver, processe tudo, volte ao fogo e dê o ponto (deve ser pastoso, mas ainda fluido, algo entre um pesto e um molho espesso).

Grelhe os carrés untados em um pouco de azeite até que estejam ao ponto. Deixe descansar por alguns segundos,  enquanto isso, doure as mini cebolas e as fatias de banana (de aprox. 5mm) numa frigideira antiaderente. Sirva tudo sobre o molho aquecido.

Fotos: Rubens Kato / divulgação

Para ler e cozinhar mais:

Paçoca de amendoim feita em casa, com amor

Paçoca de amendoim feita em casa (foto: O Caderno de Receitas)

Talvez eu tenha atingido ao objetivo final deste blog: fazer minha própria paçoquinha. Brincadeira. Mas é verdade que foi difícil tirar o sorriso da minha cara diante dos corações de amendoim recém-saídos das formas. Mais difícil ainda foi resistir a provar um pouco antes do almoço. E não resisti. Do mesmo jeito que não resistia aos quadrados de paçoca Amor vendidos pelo tio dos doces na frente da escola. Ou à caixa de paçocas em forma de rolha que minha avó Viquinha costumava ter na despensa.

Em uma paçoquinha, tanta história. É doce típico das festas juninas, mas o amendoim, originário da América do Sul, já era cultivado por aqui milênios antes da chegada dos portugueses e de suas celebrações para santos católicos. O vestígio mais antigo de agricultura dessa leguminosa (sim, ela é parente dos feijões e das ervilhas) tem 8 mil anos. Foi encontrado no norte do Peru, em um vale na encosta oeste dos Andes – e os botânicos acreditam que a planta nem era nativa da região do sítio arqueológico: primeiro ela foi domesticada, depois levada para lá. O Brasil é o país com o maior número de espécies – 63 – e cientistas estudam como a distribuição delas está relacionada a migrações de povos indígenas.

Foram os colonizadores europeus que levaram o amendoim a outros continentes. E foram eles também que colocaram açúcar na paçoca indígena: o nome paçoca vem do tupi pa’soka, que remete a socar ou esmigalhar; ele não se refere só ao amendoim amassado, mas a outros preparos pilados, como o de farinha de mandioca com carne.

Hoje os maiores produtores de amendoim são China e Índia – no Brasil, a produção chegou ao auge nos anos 1970, depois caiu, substituída em parte pelo cultivo de soja. A semente que cresce em vagens debaixo da terra se tornou parte de comidas tradicionais de diversos países. Está no ndolé, ensopado típico de Camarões, se espalha como manteiga na torrada dos americanos, se combina deliciosamente ao frango na cozinha chinesa.

Mas a paçoca é nossa. E a receita abaixo, com farinha de mandioca, que também é coisa nossa, eu tirei do caderno da minha bisavó Maria.

Teste número 89 – Paçoca de amendoim
Fonte –
 Caderno de receitas da bisavó Maria.
Grau de dificuldade – Fácil.
Resultado – Minha própria paçoca – com amor.

Rendimento: 12 paçoquinhas

Ingredientes
½ xícara de farinha de mandioca
250 g de amendoim torrado, sem pele e sem sal
4 colheres sopa de açúcar
1 pitada de sal

Modo de preparo
Toste a farinha de mandioca em uma frigideira.

Moa o amendoim no processador, no liquidificador ou em um pilão.

Junte todos os ingredientes e amasse com as mãos.

Molde a paçoca em formas: eu usei uma forma de gelo, de silicone, mas você também pode usar aros de metal. Aperte bem a mistura na forma ou no aro, para firmar, depois retire com bastante delicadeza.

Para ler e cozinhar mais: