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O lanche do avião e o valor da sinceridade

Misto quente (User:Tamorlan [GFDL (http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html)
(foto: Wikimedia Commons)

Posso fazer macarrão, posso fazer sorvete, posso fazer pão de fermentação natural lambuzado de geleia caseira de morangos orgânicos. Meu filho gosta, mas não troca nada disso pelo sanduíche servido de lanche no avião.

Não importa a companhia aérea, se é quente ou frio, grátis ou comprado, murchinho ou massudo (ou as duas coisas). Se tiver duas fatias de pão, queijo e presunto (peito de peru também vale) no meio e vier das mãos enluvadas de um comissário de bordo, é melhor do que qualquer coisa que eu possa preparar.

Já tentei dissuadi-lo. Instruí-lo. Não lembro bem se movida por ciúme, por atenção à saúde dele ou por vontade de poupar os reais mal gastos no serviço de bordo. Talvez tenha sido só para ser sincera mesmo.

Gente, tão melhor lanche caseiro. (Farofeiros do céu, uni-vos!) E, se for lanche comprado, existem tantas opções mais interessantes em terra, de preferência fora dos limites inflacionados do chão aeroportuário.

“Filho, sabia que a maior parte das pessoas acha comida de avião uma coisa ruim? É até piada comida de avião…”

Então um tremor no beicinho. Olhos úmidos de lágrimas. Um suspiro sentido.

“Mãe, é minha comida favorita do mundo!”

Me senti a sádica que só diz a mais estrita verdade quando alguém aparece com um corte de cabelo novo.

Sai um sanduba de avião no capricho, por favor. Pode passar no crédito.

. . .

Tempo ao tempo.

O último feriado quase abalou a fé do Pedro no lanche aéreo.

Pedimos o sanduíche nas nuvens, não tinha.

Já em terra, no Parador Hampel, onde nos hospedamos em São Francisco de Paula (RS), resolvemos agradar o filho com um misto. Não havia presunto, mas embutidos locais, que descrevemos como “tipo presunto, mas melhor”. Ele comeu, gostou, mas não se deixou impressionar pela pouca semelhança com a comida de avião.

Passam-se os dias, trilhas, cachoeira, cavalgada, churrascos, visita ao Natal de Gramado, misto quente sem gracinha numa passagem por Canela.

No fim do feriado, Pedro melancólico, querendo prolongar a viagem.

“Sabe, mãe, aqui eu experimentei duas coisas melhores da vida: o melhor pula-pula (do hotel) e o melhor sanduíche (o de Canela).”

“Mas e o sanduíche do avião, filho?”

“Ei, você está me deixando confuso!”

O gosto do mundo

Pedro de avental de cozinha

Ter filho é sentir de novo o gosto de experimentar o mundo pela primeira vez. O gosto do pão, o gosto do pêssego, o gosto do vento na cara na praia, o gosto de aprender uma palavra, de beber água da chuva, de raspar a tigela de massa de bolo, do cheiro de sabonete da vovó.

– O que é isso, mamãe?
– Isso o quê?
– Esse cheiro.
E eu, com a cabeça no dia-a-dia, não tinha sentido nada.
– Vem da petshop. Deve ser xampu de cachorro.
– Delícia.

O narizinho atento que se enfia no bolo de chocolate, no meu cabelo, no pelo da ovelha na fazenda.

Agora ele sabe falar. “Tô satisfeito”, diz para a mãe satisfeitíssima. Mas não precisou dizer nada para mostrar o quanto amou pipoca quando comeu pela primeira vez, no circo. Com um ano, ria, comia, colocava algumas na minha boca para dividir a felicidade.

E limão então. Ao chupar uma fatia, uma careta daquelas, seguida pelo já clássico “Mais!”.

Uvas passas são moscas, e isso é bom. Sopa de pedra tem um sabor especial, ainda mais quando o ingrediente mágico vem de um garimpo no parque. A fatia de pão vira dinossauro, tubarão, formiga. Uma transformação por mordida. A alegria de explodir a película da semente do mamão, alegria quase tão grande quanto a de sentir as patinhas do tatu-bola passeando na pele.

O riso. Um riso solto, claro, transparente. Com os olhos.
– A gente tinha um gato que jogava os tomates no chão… Ploft! E brincava com eles até que ficavam cheios de furinhos.
– Hahaha. De novo!
– De novo o quê?
– O barulho.
– Ploft?
– Hahahaha.
– Ploft!
– Hahahaha! De novo!

– Você derrubou o suco sem querer?
– Não. Foi de hipopótamo.
E a bronca vai pelo ralo.

As ambições.
– Eu como muito. Sabe por quê? Pra virar pai!
Ou
– Mamãe, quero comer a Lua!

Eu também, filho.

Nostalgia e coragem para testar a comida materna

Foto: Mariana Weber
O caderno: 204 receitas à minha espera

Um aviso: não sou cozinheira de mão cheia, muito menos chef. Adoro comer, mas cozinho pouco. Me viro. Tenho uma meia dúzia de especialidades que preparo de quando em nunca e me saio muito bem com elas. Mas, no dia a dia, quem mais faz comida em casa é o meu marido. Talvez por ver o gosto que ele tem em cozinhar (e sentir o gosto dos pratos dele), eu muitas vezes me acomodo na cadeira da mesa de jantar. Ou melhor, assumo outras tarefas enquanto ele corta, mistura, peneira, amassa, assa, refoga, frita.

A vida não estaria mal se seguisse assim, mas, há alguns anos, pedi emprestado para minha mãe, Amanda, o caderno de receitas dela. Desde então, ele me espreita na prateleira da sala, esperando que eu coloque em prática alguns dos pratos marcantes da minha infância. As páginas desbotadas contêm comida simples, feita para a família, boa parte dela datada (ou vintage…). Um mundo sem medo do leite condensado e outros atalhos de produtos industrializados (faça uma cobertura para o bolo ou use uma pronta mesmo, sugere uma anotação da minha mãe).

Assim como eu não sou prendada, minha mãe não era uma dona-de-casa que passava seus dias a ver programas de culinária na TV e preparar quitutes. Trabalhava fora, ralava, e o faz até hoje. Quando podia, cozinhava (bem) para os três filhos. Uma comida no geral equilibrada, mas que incluía às vezes doses altas de açúcar e sódio, gordura saturada ou mesmo hidrogenada – durmam com isso, mães que só compram orgânicos.

Eu mesma, que compro orgânicos com frequência mas não tenho medo de banha de porco ou de uma injeção de açúcar de vez em quando, sinto arrepios ao ler alguns trechos do caderno. Patê de salsicha enlatada?! Espero que você nunca tenha feito isso para mim, mãe, porque eu certamente não vou servir isso para o meu filho. Quanto a outros pratos, que vontade de preparar para o pequeno! E pedir ajuda para ele, assim como eu a ajudava – minha caligrafia de criança em algumas páginas lembra também que, certa vez, assumi a tarefa de passar a limpo as receitas que parentes e amigas tinham dado a você em folhas avulsas…

Mas, voltando ao (ugh!) patê de salsicha. Quem sabe se a gente adaptar, usar porco porco em vez de porco processado? Olha que pode ser bom! Está aí um desafio para um futuro post. Outros desafios virão. Para vencê-los, pretendo contar com a ajuda de profissionais, amigos, leitores, do marido bom de fogão e, é claro, da minha mãe, ainda que a algumas centenas de quilômetros de distância. Imagino que às vezes vai dar certo e às vezes não.

Neste blog, também pretendo conversar com chefs para entender como a comidinha da mãe (ou do pai, da avó, do avô, da tia…) marcou suas infâncias e influencia o que eles fazem hoje. E vou dar dicas e pitacos sobre restaurantes, bares, viagens e o que mais me der na telha.

Avante, com muito sabor, uma pitada de nostalgia e bastante coragem para colocar à prova e modificar a comida materna.