Tag: slow food

Carlo Petrini, criador do Slow Food: “Falar só de receitas é pornografia alimentar”

Uma conversa com o italiano que não acredita em gastronomia sem ambientalismo – e uma lista (com receitas!) de cinco sabores brasileiros que precisam ser protegidos.

Carlo Petrini, fundador do Slow Food (foto: Janne Tervonen)

Nos anos 1980, Carlo Petrini e outros ativistas protestavam contra a abertura de um McDonald’s na Piazza di Spagna, em Roma, e assinavam um manifesto contra a “loucura universal da Fast Life”. Nascia assim o Slow Food, movimento de defesa do prazer à mesa e das tradições da cozinha regional. Trinta anos depois, Petrini segue lutando por alimentos bons, limpos e justos (em outras palavras, alimentos artesanais de qualidade, gerados em um sistema que respeita o meio ambiente e o produtor). Como ele disse em sua palestra no Fruto, seminário promovido em São Paulo pelo chef Alex Atala:

Um gastrônomo que não é ambientalista é tonto, estúpido. Mas um ambientalista que não é gastrônomo é triste. E uma pessoa triste não pode mudar o mundo”.

Petrini, logo se nota, não é de meias palavras. O sistema global alimentar “é criminal”, “um fracasso”. Priorizar finanças à produção “é um desastre”. E não se deve restringir gastronomia a panelas – “se falamos só de receitas é pornografia alimentar”. Em uma conversa com jornalistas em São Paulo, ele discorreu sobre os desafios da alimentação no mundo. E mostrou que, para defender um estilo de vida slow, não é preciso ter fala mansa.

A seguir, destaquei alguns trechos dessa conversa. No final, aproveitei também para listar itens da Arca do Gosto, projeto do Slow Food que cataloga alimentos e conhecimentos culinários ameaçados de desaparecer. Coloquei também links para receitas – porque a gastronomia não se restringe a elas, mas cozinhar também pode ser uma forma de preservar ingredientes e tradições.

Desperdício e consumo de carne
“Hoje se produz comida para 12 bilhões de pessoas (a população mundial é de 7,6 bilhões). Falam que, como a população vai aumentar, necessitamos de maior produção. Esse é o paradigma errado. O melhor campo de trabalho é a redução do desperdício. Agora, há uma situação particular: o consumo da carne. Na Itália, se consomem 100 quilos de carne por ano para cada italiano. Nos Estados Unidos, 125 quilos. Se em todo o mundo se comer essa quantidade de carne, não necessitamos de um planeta, necessitamos de três planetas. Porque neste momento a maioria da terra é para produzir comida para os animais que comemos.”

Quilômetros no prato
“Na sociedade camponesa, o conhecimento se transmitia da mãe ou do pai, era direto. Somos uma sociedade industrial, pós-industrial, e o cordão umbilical da sabedoria está cortado. No último ano o Slow Food na Itália implementou 1000 hortas em escola – a horta é uma forma educativa. Sem informação, há uma dimensão de pornografia alimentar. Deve have receitas, é fundamental, mas deve haver também informação sobre o meio ambiente, a rastreabilidade dos produtos… De onde esse produto? Vamos ver quantos quilômetros estão no prato. Essa é a nova fronteira. Não me interessa que lindo é o tomate, se ele vem da China, chega à Itália e vai enlatado à África. Os jovens têm muito mais bandeira nesse sentido do que a minha geração. Minha geração… Desastre. Se comia de tudo. Hoje o jovem pergunta sobre a rastreabilidade do produto e quanto se paga aos produtores. Em meu país há orgânicos que chegam do Chile. Prefiro produtos locais porque sei que o orgânico do Chile atravessa os continentes. Comer local, ajudando a economia local.”

Cozinhar é preciso?
“Não se pode ter coração sensível à comida se não a manipula. Mas eu manipulo pouquíssimo… É uma forma política, trabalhar os produtos. Esta é uma geração (os jovens) que se reconcilia com a natureza pela cozinha e pela horta.”

Biodiversidade
“A Arca do Gosto (catálogo de alimentos ameaçados de desaparecer, montado pelo Slow Food) é nossa história, nossa natureza. Uma forma de promover a agricultura de base. Aqui há poucas denominações de origem, e a Arca do Gosto é uma forma de denominação de origem. E não é nostalgia, não é uma coisa velha. Muita gente pensa que a modernidade é a comida porcaria que comemos. Mas a modernidade é reconectar à nossa produção com o campo. Precisamos fortalecer os produtos verdadeiros. Porque, atenção, se não houver um trabalho forte, vão desaparecer. A biodiversidade vai desaparecer.”


5 SABORES DA ARCA DO GOSTO

Alguns alimentos listados no livro A Arca do Gosto no Brasil, lançado pelo Slow Food:

Livro A Arca do Gosto no Brasil

– Farinha de araruta
Fina e branca, é feita do rizoma da araruta (Maranta arundinacea). Há indícios de já era cultivada 7 mil anos atrás. Muitas variedades eram cultivadas pelos índios caraíba e caiapó, na Amazônia – as mulheres extraíam o amido da planta para engrossar sopas de idosos e crianças. Também já foi muito usada na confeitaria.

Já falei da minha dificuldade de achar a farinha de araruta para fazer pratos que encontro nos cadernos de receitas de família. Em São Paulo, encontrei no Mercado de Pinheiros. E fiz esta receita de biscoitos de araruta.

Biscoitos de araruta

– Batata-doce roxa
Cultivada geralmente por pequenos agricultores, nem sempre chega aos mercados das grandes cidades.

Uma pena porque, além de gostosa e nutritiva, empresta um visual único aos pratos, com sua cor vibrante. Nunca consegui resistir ao doce de batata-doce roxa das festas juninas.

Para um lanche rápido, gosto de cozinhá-la alguns minutos no micro-ondas, depois de furar a casca com um garfo, e então servi-la aberta, com mel. Também dá ótimos chips (receita aqui).

Batata-doce roxa com mel (Foto: O Caderno de Receitas)

Goiabada cascão
As versões industriais ameaçam a produção artesanal desse doce de corte, em que goiabada e açúcar se misturam no calor do tacho de cobre até virar uma massa aromática despejada em caixas de madeira. Também conta a mudança de hábitos, ou a falta de disposição de novas gerações para gastar o braço fazendo os doces.

Com a goiabada cascão, faço este docinho de festa delicioso e fácil (quer dizer, fácil quando a goiabada já está pronta…). Ou esta receita de torta de goiabada com banana.

Torta de banana e goiabada (foto: O Caderno de Receitas)

– Queijo Canastra
Produzido com leite cru na Serra da Canastra, em Minas Gerais, passa por um período de maturação e adquire um sabor levemente ácido.

Pão de queijo com ele fica sensacional.

– Jabuticaba
Esta fruta brasileira tem perdido espaço por causa do desmatamento e da criação de gado. Dá uma geleia boa demais, mas o mais gostoso é comer direto do pé, até se fartar. Um programa que eu ainda quero fazer: visitar a Maria Preta Jabuticaba, em Campinas (SP), em que é possível pagar para colher e comer as frutinhas.

Geleia de jabuticaba - foto O Caderno de Receitas


Já conhece a Loja O Caderno de Receitas?
Caderno de receitas Cícero na Loja O Caderno de Receitas

 

6 delícias com história que provei na Semana Mesa SP

Saí do evento Semana Mesa SP, que aconteceu de 3 a 5 de novembro, com boas experiências gastronômicas na memória e um queijo na bolsa – só não comprei mais coisa precisava encarar um longo percurso de transporte público a partir do Senac Santo Amaro, local do evento. As melhores experiências eu compartilho aqui. O queijo é meu.

Este eu levei pra casa: queijo de cabra temperado com aroeira
Este eu levei pra casa: queijo de cabra temperado com aroeira

1. Queijo de cabra da família de Ariano Suassuna

O produto do laticínio Grupiara de Taperoá, na Paraíba, é bom mesmo, mas a história e a embalagem ajudam. A criação de cabras da fazenda Carnaúba, que produz o leite para o queijo, começou há 40 anos, em uma sociedade do escritor Ariano Suassuna com o primo Manoel Dantas Vilar. No Mesa SP, Joaquim Pereira Dantas Vilar, filho de seu Manelito, contou que Suassuna tinha ganhado um prêmio literário pelo Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e resolveu investir na compra dos animais o dinheiro recebido. São de Suassuna também os desenhos que ilustram a embalagem do queijo, que, ontem, recebeu medalha de ouro no Prêmio Queijo Brasil – Inês, filha de seu Manelito, não conseguia segurar o choro de felicidade pela premiação quando comprei minha caixa de queijo de cabra aromatizado com aroeira no estande da marca.

A versão do Slow Food Campo Grande para o feijão tropeiro leva castanha de baru
A versão do Slow Food Campo Grande para o feijão tropeiro leva castanha de baru

2. Baru tropeiro

Conheci o prato no estande da unidade de Campo Grande (MS) do movimento Slow Food, aquele que prega comer com prazer e calma, valorizando produtos artesanais de qualidade produzidos de forma sustentável. O baru tropeiro que comi ali exemplicava bem a busca pelas origens dos alimentos. Misturava castanha de baru do Assentamento Andalucia, em Nioaque, com feijões verdes das índias terenas, carne soleada à moda pantaneira e farinha de mandioca de Anastácio (cidade conhecida por promover todo ano uma festa da farinha que em que se vende bolo de massa puba a viagra de mandioca – mistura da raiz com leite condensado e pinga).

Azedinho e saboroso, o cambuci rende bons doces (além de ficar ótimo na caipirinha)
Azedinho e saboroso, o cambuci rende bons doces (além de ficar ótimo na caipirinha)

3. Geleia de cambuci com pimenta

Para uma fruta que já foi abundante em São Paulo mas  andava meio esquecida, até que o cambuci tem me perseguido bastante no último mês. Provei seu sabor azedinho pela primeira vez, na forma de sorvete, no Bar e Armazém Cambuci, no bairro paulistano do Cambuci. No fim de semana passado fiz uma segunda visita ao estabecimento e o experimentei novamente em geleia, caipirinha e na própria fruta. No Mesa SP comi outras geleias, incluindo uma com pimenta, e fiquei sabendo da Rota do Cambuci, um projeto que promove festivais para resgatar essa fruta típica da Mata Atlântica do Sudeste.

Para a moqueca ficar melhor, só faltou a vista para o mar
Para a moqueca ficar melhor, só faltou a vista para o mar

4. Moqueca de aratu do chef Edinho Engel

Ok, o Senac Santo Amaro, onde aconteceu o Mesa SP, não tem a mesma vista para a Baía de Todos os Santos. Mas a moqueca de aratu do chef Edinho Engel que eu comi com talheres de plástico durante o evento não deixava nada a dever para o que eu comi no Amado, restaurante dele em Salvador, na Bahia. Até dispensei parte do sanduíche de pernil do Mercadinho Dalva e Dito, do chef Alex Atala, para deixar mais espaço para essa delícia, feita com aratu (um tipo de caranguejo) da cooperativa Repescar, que reúne pescadores artesanais de comunidades da Ilha de Itaparica e conta com uma unidade de beneficiamento de pescado.

Peixe pra vegetariano comer
Peixe pra vegetariano comer

5. Lambaris da horta

Não, não achei que têm gosto de peixe. Fritas e empanadas em farinha de milho, as folhas de lambari da horta ficam com gosto de fritura. Da boa. Melhor aidna se acompanhadas por geleias, como a de café e a de pimenta, produzidas por Tanea Romão, do Kitanda Brasil, de Tiradentes (MG). Os lambaris da horta, aliás, fazem parte do Banco de Hortaliças Não-Convencionais da Fazenda Experimental Risoleta Neves em São João Del Rei, ali do ladinho de Tiradentes.

6. Chocolate de cacau recém-descoberto

A Amazônia esconde muitas variedades de cacau ainda não catalogadas, contou Cesar Mendes, fundador da Amazônia Cacau, de Belém (PA). Ele descobriu uma delas em uma expedição recente pela floresta e produziu um delicioso chocolate 65%, cujos pedacinhos foram distribuídos junto com amêndoas da nova variedade durante a palestra de Mendes no evento (infelizmente, estava escuro demais no auditório para fotografar a amostra).