Categoria: Histórias e receitas

Histórias e receitas: da minha família ou da sua, de chefs de cozinha, de cozinheiros amadores e de todo mundo que tem uma boa lembrança de comida.

Em busca do estrogonofe perdido

Estrogonofe feito em casa a partir de receita da chef Janaina Rueda (foto: O Caderno de Receitas)
Estrogonofe feito em casa a partir da receita que a chef Janaina Rueda aprendeu com a mãe

Estrogonofe é um prato que começou russo e terminou do mundo. Cruzando fronteiras e oceanos, se tornou familiar em lares moscovitas e nova-iorquinos, parisienses e paulistanos. Era um favorito da infância da chef Janaina Rueda, que hoje serve em seu Bar da Dona Onça a receita aprendida com a mãe, Rejane. “Como ela trabalhava à noite e cozinhava à tarde, todos os dias a gente tinha que repetir o jantar no almoço”, conta Janaina. “Quando era estrogonofe, eu comia até no café da manhã.”

O estrogonofe de Rejane levava carne, cebola, creme de leite fresco, champignon, mostarda, páprica, molho inglês, conhaque, molho de tomate. É o único prato materno no cardápio da chef, mas ela se vê sob uma influência forte do estilo boêmio da mãe, que recebia amigos para cozinhar de madrugada e a levava a tiracolo em restaurantes — muitos deles destacados por Janaina no livro 50 Restaurantes com Mais de 50 – 5 Décadas da Gastronomia Paulistana.

Nas mãos da filha, o estrogonofe da mãe mudou: perdeu o molho inglês e recebeu cogumelos frescos; no lugar da páprica, veio a pimenta-do-reino; em vez de conhaque, vodca (“Achei o gosto mais neutro, mais suave”, diz Janaina.)

Janaina Rueda e o estrogonofe do Bar da Dona Onça (reprodução: Instagram)
Janaina Rueda e o estrogonofe servido no Bar da Dona Onça (reprodução do Instagram)

Nos passeios entre países e gerações, o estrogonofe trocou ingredientes aqui, ganhou outros ali. Na verdade, ele provavelmente já nasceu de uma mistura de culturas: juntou ao smetana (creme azedo russo) uma carne temperada com mostarda que poderia ser francesa. Dizem, aliás, que foi criado no século 19 pelo cozinheiro francês do conde Pavel Alexandrovich Stroganov — ou pelo menos tornou-se um prato célebre assim. Como muitos nobres russos, os Stroganovs passavam boa parte do tempo flanando por cidades europeias; Pavel, inclusive, nasceu em Paris. A família chegou a dominar toda a Sibéria e seu palacete em São Petersburgo hoje abriga um museu.

Voltando ao estrogonofe, a comida. A receita foi publicada pela primeira vez em 1861, no livro Um Presente para Jovens Donas de Casa, de Elena Ivanovna Molokhovets. Levava então carne em cubos, manteiga, farinha, caldo, mostarda, pimenta-da-jamaica e smetana. Logo ganhou cebola, cogumelos e molho de tomate, depois até ketchup, e a partir daí se tornou possível chamar de estrogonofe qualquer preparação com alimentos em pedaços envoltos em creme: de frango com requeijão a castanhas com leite condensado.

Comecei a pesquisar essa história no fim-de-semana passado, quando resolvi cozinhar estrogonofe. O motivo era a Copa do Mundo na Rússia, mas na verdade eu estava havia tempos procurando uma deixa para preparar a receita da Janaina, compartilhada abaixo, incluindo as variações que fiz. 

Resolvi trocar o cogumelo em conserva pelo fresco, então sem saber que a chef atualmente também faz isso. Arrisquei ainda uma versão de smetana, misturando creme de leite a iogurte — li no site do Clube Eslavo que russos no Brasil apelam para esse truque.

O resultado provavelmente não é o estrogonofe do conde Pavel Stroganov, mas ajudou a lembrar por que o prato se espalhou pelo mundo.

RECEITA

Ingredientes
1 xícara de creme de leite fresco
1 xícara de iogurte
200 g de cogumelo paris fresco
1/2 xícara de azeite
1 quilo de filé mignon cortado em tiras
2 cebolas picadas
1 xícara de conhaque
4 colheres (sopa) de mostarda dijon
4 colheres (sopa) de molho inglês
2 colheres (sopa) de extrato de tomate
1 colher (chá) de páprica doce
1 colher (chá) de páprica picante
Sal a gosto

Modo de preparo
Para fazer uma versão de smetana (creme azedo), misture o creme de leite ao iogurte e deixe passar a noite na geladeira, coberto, mas não vedado (eu, na verdade, deixei fora da geladeira, coberto por um paninho, porque não estava muito quente).

Fatie os cogumelos e coloque-os em uma panela em fogo baixo para dourá-los, mexendo de vez em quando. Reserve-os.

Na mesma panela, aqueça o azeite e doure a carne (eu fiz isso em etapas, porque não queria que ela cozinhasse no próprio suco). Reserve a carne.

Doure a cebola. Volte a carne à panela.

Hora de flambar: coloque o conhaque em uma concha (de cabo longo) e o aqueça sobre a chama do fogão, bem afastada de você. Quando a bebida pegar fogo, despeje-a sobre a carne na panela e espere que evapore. (Dica: mantenha a tampa da panela por perto para abafar o fogo se for preciso.)

Adicione à carne a mostarda, o molho inglês, o extrato de tomate e a páprica. Por fim, junte o creme de leite. Espere apurar um pouco e ajuste o sal.

Estrogonofe com fritas (Foto: O Caderno de Receitas)
Se não posso ir à  Rússia, que ela venha ao meu prato

Para comer melhor:

Bolo de amendoim com brigadeiro – para a festa junina ou para quando você quiser

Fatia de bolo de amendoim com brigadeiro (O Caderno de Receitas)

Não acaba, junho! Quero desculpa para continuar fazendo comida de festa junina! Esta saiu do caderno de receitas da minha mãe e combina duas maravilhas da culinária brasileira: amendoim e brigadeiro.

O primeiro item, como comentei em um texto sobre paçoca, já era cultivado por milênios na América do Sul quando os portugueses chegaram por aqui e resolveram meter-lhe açúcar.

O segundo teria surgido na década de 1940, feito por eleitoras do brigadeiro Eduardo Gomes, então candidato à presidência. Elas vendiam o docinho para arrecadar fundos para a campanha — o militar perdeu o pleito, mas ganhou uma homenagem que perdura há décadas, embora pouca gente se dê conta dela ao atacar a mesa do bolo em uma festinha infantil.

Enfim, foi juntando um tanto de herança indígena, outro tanto de doçaria europeia e uma pitada (ou uma lata de leite condensado inteira) de influência da indústria alimentícia que nasceu este bolo de tabuleiro. Simples de fazer e gostoso de comer, já adoçou muitas festas juninas e merece adoçar muitas outras. Também vai bem com café, em qualquer ocasião — ninguém precisa de desculpa para fazer comida boa (mas, segundo o Ceagesp, a melhor época para comprar amendoim vai de maio a agosto).

Bolo de amendoim com brigadeiro (O Caderno de Receitas)

Teste número 90 – Bolo de amendoim com brigadeiro
Fonte – Caderno de receitas da minha mãe.
Grau de dificuldade – Fácil.
Resultado – Um bolo de tabuleiro com gosto de Brasil.

Ingredientes
500 gramas de amendoim torrado, sem sal e sem casca
6 ovos
250 gramas de açúcar
3 colheres (sopa) de farinha de rosca (mais um pouco para enfarinhar a forma)
Manteiga para untar a forma
Para a cobertura:
1 lata de leite condensado
1 colher (sopa) de manteiga
1 colher (sopa) de leite
1 colher (sopa) de cacau

Modo de preparo
Moa o amendoim no liquidificador.

Na batedeira, batas as claras em neve. Ainda batendo, junte as gemas, uma a uma. Em seguida vá adicionando o açúcar, o amendoim e a farinha de rosca.

Despeje a mistura em um tabuleiro untado e enfarinhado.

Pré-aqueça o forno e asse a 180ºC por cerca de 40 minutos ou até dourar levemente.

Modo de preparo da cobertura
Coloque todos os ingredientes na panela e cozinhe em fogo baixo, mexendo sempre para não grudar.

Estará pronto quando começar a soltar do fundo com a passagem da colher (ele deve ficar um pouco mais mole do que o brigadeiro feito para enrolar).

Despeje a cobertura ainda quente sobre o bolo no tabuleiro.

Para cozinhar mais:

Huminta: a pamonha boliviana que Checho Gonzales aprendeu a fazer com a mãe

Huminta (bolinho de milho e quejo) da Comedoria Gonzales

Foi com a mãe que o chef Checho Gonzales aprendeu a adaptar a cozinha andina aos ingredientes brasileiros. A família saiu de La Paz quando ele tinha sete anos e manteve por aqui costumes como o de parar à tarde para tomar café e comer huminta — uma espécie de pamonha boliviana. O milho daqui não é o mesmo, o queijo não é o mesmo, mas o ritual marcou a memória do menino que hoje serve a receita na Comedoria Gonzales, no Mercado de Pinheiros, em São Paulo.

Provei a huminta depois de receber a dica de uma amiga e leitora do blog. Na verdade, o que ela mandou foi mais um pedido desesperado: “Meu filho ama as humintas do Checo. São incríveis. Milho. Queijo. Vida. Fiquei pensando se você por acaso sabe que receita é essa.”

Eu não sabia, e fiquei louca para saber. Anos atrás publiquei um post sobre humita cremosa, preparada por um chef argentino, mas a huminta do Checho era outra história. Então fui correndo atrás dele, que já tinha contribuído para o blog antes, falando do rollo de queijo feito pela mãe, Maria Tereza.

A huminta também veio de Maria Tereza, mas foi adaptada para a Comedoria. Na receita dela, a massa ia ao forno em um tabuleiro, depois era cortada em pedaços. No restaurante, Checho preferiu assar porções individuais: o resultado são bolinhos de milho úmidos e macios, recheados de queijo derretido e salpicados de sementes de coentro. Vão bem com café ou como acompanhamento dos ceviches que o chef serve no Mercado de Pinheiros. (Já nas ruas de La Paz, as cholas — mulheres de raízes indígenas — costumam vender huminta cozida e embrulhada em folha de milho como a nossa pamonha.)

As voltas que o mundo dá. Maria Tereza, que tanto influencia a comida do filho, não gostava de cozinhar. “Era uma obrigação, e ela sempre odiou, achava cansativo. Às 6h, 7h da manhã, já estava na cozinha”, lembra Checho. Com o tempo, no entanto, essa relação mudou, e os pratos favoritos do filho, como falso conejo (“falso coelho”: bife de boi empanado, servido com molho e ervilhas) e chairo (sopa de carne e vegetais, incluindo batata desidratada), assumiram sua força de conexão. “Hoje minha mãe cativa através da comida.”

A relação de Checho com as heranças culinárias também se transformou. Ele entrou na cozinha profissional meio por acaso; foi o emprego que apareceu. Nos anos 1990, voltando de uma temporada na Espanha, fez comida mexicana, virou sócio de bar, abriu restaurante. Como praticamente todo chef ou aspirante a chef no Brasil na época, se guiava pelas culinárias francesa e italiana. Foi Alex Atala que o aconselhou a se jogar na latinidade. “Todo mundo queria ser francês, todo mundo queria ser Paul Bocuse e Joël Robuchon”, diz Checho. “Isso até entender que a própria identidade poderia ser muito mais rica.”

Está aí a huminta (e estão também as filas na Comedoria Gonzales) para provar o acerto da mudança de rumo.

Huminta (bolinho de milho e quejo) da Comedoria Gonzales

RECEITA

Huminta da Comedoria Gonzales

Rendimento: 50 bolinhos

Ingredientes*
1920 gramas de milho debulhado
375 gramas (3 xícaras) de farinha de trigo
6 ovos
360 gramas de manteiga
6 gramas (2 colheres de chá) de colorau
12 gramas (½ colher de sopa) de sal
45 gramas (2 ½ colheres de sopa) de fermento em pó
720 gramas de queijo (Checho mistura meia-cura com queijo fresco)
Sementes de coentro
*Como o restaurante trabalha com ficha técnica e medidas exatas, coloquei entre parênteses quantidades aproximadas em medidas mais caseiras. Minha sugestão: se não quiser fazer 50 bolinhos — é bolinho à beça —, divida todas as quantidades por dois ou três.  

Modo de preparo
Triture o milho no liquidificador.

Bata todos os ingredientes, exceto as sementes de coentro.

Distribua a massa em forminhas de papel (como as próprias para cupcake). Salpique as sementes de coentro por cima.

Leve ao forno pré-aquecido. Asse a 180ºC por 15 minutos.

Checho na Comedoria Gonzales (Foto: Lucas Terribili)
Checho na Comedoria Gonzales, no Mercado de Pinheiros (foto: Lucas Terribili)

Para ler e cozinhar mais:

Duelos da Copa: França x Peru