Categoria: Histórias

Crônicas sobre comida e histórias à mesa.

Filho, me desculpe

Filho, perdão pelo sol que tiramos do seu céu, pela chuva que você não pode beber, pelas árvores de frutas encardidas, por tudo que você não vai conhecer porque nós destruímos - O Caderno de Receitas

Filho, perdão pelo sol que nós tiramos do seu céu.

Perdão pela chuva preta que você não pode beber. Não, não brinque de sentir as gotas na língua. Coisa suja.

Perdão pelas árvores com frutas encardidas.

Por tanta comida jogada fora.

Pelos rios que você nunca vai ver, porque secamos, enterramos, enlameamos.

Pela terra que morre e não dá mais nada.

Pelo pó de ferro que gruda nos pés e nos pulmões quando visitamos a casa da vó. Dos pés, esfregando sai.

Pelos peixes cheios de mercúrio, pelas abelhas que desaparecem.

Perdão por tudo que você nunca vai comer e beber. Por toda vida que você não vai conhecer.

Até chocolate dizem que corre o risco de acabar, acredita? Um mundo sem cacau…

Perdão pelo calor, perdão pelo frio, perdão pelo ar ruim que queima dentro da gente.

Perdão pelo mar. Eu sei, você gosta da praia, tem pedra, tem areia, tem planta. Mas a tia viu lixo, viu gato morto boiando. Não controlamos as correntes, filho.

Até tentamos, sabe, criar uma bolha. Comprar comida sem veneno, hortinha na janela, domingo no parque, escola com árvore.

Não é suficiente. A realidade explode a bolha. Invade nossa boca como o plástico que se quebra em pedacinhos e contamina tudo.

Eu queria ter feito mais, quero fazer mais, mas agora sinto que faltam forças. Só você para me animar. Talvez amanhã. Amanhã pode ser tarde.

(Texto que eu publiquei no blog O Caderno de Receitas no Globo)

O blog O Caderno de Receitas agora está no jornal O Globo

Quem acompanhava as histórias do caderno por aqui agora pode me acompanhar no site do jornal O Globo, na newsletter gratuita (já assinou?), no Instagram ou no Facebook.

Neste site, vou manter as informações sobre o Caderno, como a loja e os serviços — você sabia que somos uma agência produtora de conteúdo com foco em histórias de comida e gente? Em breve, quero também abrir um espaço para que você me conte suas histórias (se quiser se adiantar, mande no email contato@ocadernodereceitas.com.br ou pelas redes sociais).

Para encerrar uma fase e começar outra, deixo abaixo meu primeiro post no Globo, em que fiz um balanço desses anos de O Caderno de Receitas. Espero que a gente continue se encontrando por lá.

Como cozinhar receitas de cadernos de família mudou meu jeito de ver o mundo

Cinco anos atrás, sequestrei o caderno de receitas da minha mãe. Queria apresentar para o meu filho os sabores que marcaram minha infância. Mas não sabia prepará-los. Em casa, ninguém me ensinou. Porque fui criada para ganhar o mundo, não a cozinha. E só depois de andar um bocado mundo afora percebi que não precisava escolher entre um território e outro.

Com o caderno em mãos, resolvi testar as receitas e contar em um blog as histórias que apareciam nas entrelinhas — sobre os ingredientes, as épocas, as pessoas. À medida que seguia com a experiência, recebia mais cadernos (de parentes, de parentes de amigos, de desconhecidos, de gente da gastronomia) e ouvia mais histórias de comida.

No início era um hobby, depois virou meu foco profissional. E hoje estou aqui para contar algumas conclusões a que cheguei ao longo do processo.

1ª – Não dá para confiar em caderno de receitas

Quase sempre faltam passos importantes. Fora que o texto diz uma coisa, mas a dona do caderno fazia outra. Algumas receitas só mostram os ingredientes e não dão instruções, outras dão instruções e não dão quantidades. Ou dão medidas quase tão exatas como os cálculos de certas obras públicas: um pires meio cheio, um copo menos um dedo…

Enfim, seguidas ao pé da letra, as receitas com frequência zicam. Melhor seguir a intuição, pesquisar ou telefonar para a mãe, que liga para uma tia, que lembra de ter comido de outro jeito na casa de outra tia… O que me leva à segunda descoberta.

2ª – Cadernos de receitas são redes sociais femininas

Bem antes do Facebook, eles já traziam conteúdos compartilhados, comentados, curtidos ou espinafrados. Com a vantagem de que alimentam, e não apenas nossos egos. A receita da vizinha ou da tia ou da prima, muitas vezes creditada no título (pãezinhos da Dona Cordinha, bolinhas de queijo da Ana…), recebe adendos, dicas, avaliações: “é assim mas faço assado”, “muito bom”, “ruim” (vi uma dessas resenhas negativas, sobre um pudim de ovos cozidos, em um caderno da minha avó Viquinha). Em um telefone sem fio que borra o original, mas acrescenta novas camadas de lembranças e sabores, a receita pulava para outro caderno, e dali para outro e outro e outro. E, sim, era uma rede feminina, com raras aparições masculinas — geralmente para dizer que esse era o prato preferido do sicrano ou do beltrano.

3º – Falar de comida é um jeito poderoso de falar da nossa história

À mesa criamos algumas de nossas melhores memórias. E, quando comemos, cozinhamos ou conversamos sobre comida, temos a chance de retomar tudo isso.

Para mim, falar de comida é uma boa desculpa para contar histórias. Pode ser a história de uma pessoa, de um lugar, de um ingrediente que já não se acha, do caminho do alimento até o prato, de uma lembrança querida.

4ª – Vó gosta de modernidade

Muita gente, inclusive nossas doces ou não tão doces avozinhas, caiu de amores pelas modernidades que a indústria alimentícia colocou na mesa (e nos cadernos de receitas) a partir de meados do século 20. Caldo em cubinhos, sopa em pó, sobremesas de leite condensado eram soluções práticas para o dia-a-dia. E, se praticidade é um atributo tentador hoje, pense como era quando a mulheres começavam a entrar no mercado de trabalho e ainda estavam muito longe de dividir com os parceiros as tarefas da casa.

A verdade é que sou bem mais desconfiada dessas modernidades do que minhas avós eram.

5ª – Cozinhar dá autonomia (e não saber cozinhar é loucura)

A gente terceirizou e perdeu a capacidade de fazer um bocado de coisas na vida. Não pretendo costurar minhas roupas ou construir minha casa, mas abrir mão de uma habilidade tão básica como preparar o próprio alimento parece uma perda grande demais. É bom saber, nem que seja só para fazer escolhas melhores ao comprar comida pronta ou para escolher quando e como cozinhar.

6ª – A gente escolhe o grau de dificuldade da cozinha

Cozinhar é difícil? Não precisa ser. No dia a dia, depende um pouco de organização e de aproveitar os ingredientes à mão. Verdade que muitas vezes falta tempo, mas existem opções tão simples (ou quase tão simples) quanto esquentar comida pronta. E existem atalhos e existem armadilhas na cozinha. Fazer macarrão com molho de tomate caseiro, a partir de tomate pelado, pode ser quase tão rápido quanto macarrão com molho pronto — e tão melhor.

7ª – A vida é curta para pagar por comida média

Mil vezes comer minha própria comida do que gastar meu dinheirinho em restaurantes mais ou menos. Melhor reservá-lo para lugares que valem realmente a pena.

8ª – Cozinhar pode ser um ótimo passatempo

Acho um programão de fim de semana. Com o meu filho do lado, então, é aquela bagunça (controlada). Quer tentar? Segue uma receita de bolo de um caderno da minha avó materna. Recomendo puro ou com geleia.

RECEITA

Bolo de fubá, parmesão e raspas de limão da Vó Viquinha

Bolo de fubá

Ingredientes

  • 2 colheres (sopa) de manteiga
  • 1 ½ xícara de açúcar
  • 1 ½ xícara de fubá
  • 1 ½ xícara de farinha de trigo
  • 1 ½ xícara de leite
  • 1 ovo
  • 1 colher (sopa) de fermento químico
  • 1 colher (café) de sal
  • 3 colheres (sopa) de parmesão ralado
  • Raspas da casca de 1 limão

Modo de preparo

Na batedeira, primeiro misture a manteiga com o açúcar. Junte aos poucos os outros ingredientes, peneirando previamente a farinha e o fubá, e bata tudo muito bem. Junte o fermento e bata mais. Coloque em uma forma de bolo untada e enfarinhada e leve ao forno a 200ºC até assar (cerca de 30 minutos ou quando um palito espetado no meio da bolo sair sem pedacinhos de massa grudados).

O combo todo

Combo de pipoca - Toy Story 4 (O Caderno de Receitas; montagem com foto Canva)

Não basta ir ao cinema no shopping na tarde de feriado, tem que comprar pipoca. E não basta comprar pipoca, tem que ser a que vem com o balde de chapéu de caubói. Mas, claro, não basta comprar a pipoca e o balde de caubói.

“Vale mais a pena comprar o combo”, informa a atendente preocupada com as minhas finanças.

“O combo?”

“É, pipoca, dois sucos, sorvete, chapéu-balde ou copo-bota por 55. Só o brinde é 40…” (Depois vi que era 35.)

Resisto: “O sorvete deve ter leite, meu filho não pode”.

“Pode substituir por bala. Não tem leite.”

“Eu posso, mamãe! Eu quero, mamãe!”

Eu cedo.

Momentos depois, tento equilibrar dois copos de suco doce de uva pouco menores do que o lixinho do banheiro de casa, um balde de pipoca maior do que o lixinho do banheiro de casa e o chapéu-balde que eu achava que caberia na cabeça do filho, mas não cabe e tampouco cabe na bolsa, que fica entreaberta.

O filho ajuda, milagrosamente nada se espatifa no chão e chegamos a nossos lugares sem dar banho de uva em ninguém. Mais uns 5 minutos e coloco os copos nos braços das cadeiras, enfio os canudos (biodegradáveis?) na tampa, busco um banco de criança e encaixo o filho, entrego o barril de pipoca pra ele, entucho o chapéu na bolsa, desligo o celular.

Alguns trailers, enfim o filme. Toy Story 4 é incrível, um mundo que eu gostaria que existisse ou continuasse existindo. Em 3D, dá até pra esquecer que estou num shopping metido a fino, cuidadosamente arquitetado pra enfiar a faca bem fundo nos clientes diferenciados — se eles não cortarem os pulsos antes.

Mas agora na tela está a Betty, olha ela, uma boneca de porcelana sem medo de se quebrar, e estão também o Woody, o Buzz, a Jessie, o Garfinho. Na plateia, gargalhadas e um tiquinho de choro emocionado. Ah, tudo vale a pena.

Até que o filme acaba, as luzes acesas mostram as pipocas e outras porcarias pisoteadas pelo chão, o balde está pela metade, os copos de suco ainda pesados.

O filho empaca na praça de alimentação pra comer mais pipoca e bala, o dia que estava tão bonito vai acabando. Bate uma irritação que pode ser uma bad depois do pico de açúcar e sal do combo. Pode também ser a ressaca por ter cedido ao combo todo.

Ainda tem a fila do elevador.

Telma Shiraishi: dos almoços de macarrão e sushi da infância ao Aizomê da Japan House

A chef Telma Shiraishi no Aizomê da Japan House (foto: O Caderno de Receitas)

Na minha coluna na Casa e Jardim deste mês, publico uma receita de conserva de maxixe de Telma Shiraishi, do Aizomê. Aqui no blog, além da receita, compartilho trechos da entrevista com a chef. Na conversa, ela me contou sobre seu mergulho nas raízes nipo-brasileiras para desenvolver uma cozinha japonesa autêntica e autoral, com ingredientes locais — que foram parar inclusive nas marmitas da princesa Mako do Japão em visita ao Brasil.

Neta de imigrantes, Telma chegou à gastronomia depois de tentar a medicina, a moda e publicidade. Acabou se tornando uma embaixadora da culinária do Japão. No sentido figurado e no literal. Desde 2018 é responsável por banquetes e recepções do consulado japonês em São Paulo. Em março deste ano, recebeu do governo japonês o título de Embaixadora da Boa Vontade da Difusão da Culinária Japonesa. E agora em abril inaugurou a segunda unidade do Aizomê, dentro da Japan House, centro cultural na avenida Paulista — lá sua missão é mostrar para mais gente que vale a pena conhecer a comida japonesa além do sushi de salmão.

Comida da infância

“Meus avós são imigrantes japoneses, meus pais já nasceram aqui. No final de semana se faziam mesas enormes, de 20, 30 pessoas, na casa de um avô ou de outro. Sempre tinha muita mistura: podia ter sashimis e churrasco, podia ter macarronada com sushi.  E sempre nesse tom de celebração, de encontro, de estar todo mundo junto, de partilhar.

Lembro da minha avó paterna supercontente e emocionada porque tinha conseguido ingredientes para fazer sushi. Naquela  época era muito difícil conseguir um bom arroz, uma alga nori. Alguém tinha trazido do Japão para ela, que serviu uma reunião de família.

Meu pai era gerente do Banespa no Largo da Batata. A gente morava na região e ia ao mercado de Pinheiros comprar peixe e outras coisas. Só que, depois que ele sofreu um assalto, decidiu se mudar para o interior. Dos 10 aos 17, morei em Paraibuna e era muito moleca. Quando não estava com um livro, eu estava no mato, vendo bicho, vendo planta. Também pescava muito com meu pai. A gente chegava com peixes e minha mãe morria de nojo, acabava que eu os limpava.

No interior era mais difícil ainda conseguir alguns ingredientes. Mas a gente tinha uma dieta muito variada. Minha mãe trocava receita com as vizinhas, uma era italiana, outra era libanesa…

Os vizinhos ou tinham fazenda ou tinham uma horta no quintal.  Lembro da minha mãe: ‘Hoje eu quero refogar uma couve, vai na vizinha’. Então eu ia correndo, tocava a campainha, a gente descia no quintal e catava a folha de couve no pé.  

Do lado de casa tinha uma árvore de sabugueiro que, quando dava flor, ficava cheia de borboletas. Tanto que tem uma soda de sabugueiro aqui (na Japan House). É um pouco disso que eu resgato.”

 

Mudanças de rumo

“Como eu tinha facilidade para estudar, [a família aconselhou]: ‘ah, vai ser médica’. E, como eu não tinha uma vocação muito nítida, falei: ‘vou tentar’. Não sei se por sorte ou por azar, passei direto na USP. Mas no terceiro ano, quando você começa em hospital e vê o ser humano em situações muito tristes e feias, percebe que o buraco é mais embaixo. Para mim, foi pesado. Na época a USP estava com um programa de formação de cientistas e tinha criado um curso Experimental de Ciências Moleculares. Fiquei um ano nesse programa, mas comecei a perceber que a minha vocação talvez fosse mais artística. Fiz um semestre de publicidade, aí fui estudar moda. Sempre fui meio excêntrica, pintava o cabelo de azul, roxo, laranja, vermelho, gostava de me vestir diferente. Acabei trabalhando dois anos com o Fause Haten, como assistente de estilo. Depois tive a minha primeira filha e fiquei um tempo em casa. Aos poucos comecei a trabalhar como freelancer em eventos. E cada vez mais as pessoas foram me pedindo para fazer a parte gastronômica. Até que uma prima do meu marido me ofereceu para comprar a parte dela num restaurante japonês moderninho que ela tinha aberto na Vila Olímpia com chef Shin [Koike]. Eu e o Shin deixamos esse restaurante lá e abrimos outro, um japonês para japoneses. Foi quando nasceu o Aizomê.

Desde o início, 12 anos atrás, estava claro que queríamos trabalhar fora dos padrões do que era corrente em restaurante japonês. O que estava na moda eram nos modelos americanos, com sushi de salmão, cream cheese, roll califórnia. E havia uma culinária japonesa mais ou menos tradicional restrita à comunidade, na Liberdade ou em Pinheiros. No Aizomê, todo o cardápio, a base de sabores, tudo foi pensado para os japoneses e principalmente para os japoneses da região da Paulista, onde estão as grandes sedes das empresas japonesas.”


Uma nipo-brasileira na cozinha

“No começo eu fazia tanto a parte administrativa quanto a cozinha do Aizomê. Depois de cinco anos o Shin quis fazer outros projetos e de repente eu estava sozinha. Uma mulher que nem é japonesa num restaurante voltado para japoneses.
Tive que ir mais fundo ainda. Depois de cinco anos eu já tinha entendido um pouco dos sabores. No Ocidente a gente fala em doce, salgado, ácido e amargo, para os japoneses o mais importante é o quinto gosto, o umami. Todas as preparações, o dashi, que é o caldo básico, e todas as técnicas são para realçar esse umami. O maior desafio foi entender isso e entender como você extrai isso dos alimentos e das combinações. Fiz isso viajando, indo aos mercados. E pesquisando muito, estudando muito.

Os primeiros dois, três anos que eu fiquei sozinha foram para mostrar para a clientela que a qualidade e os sabores estavam todos lá ainda, para ter a chancela de que a gente continuava a ser um restaurante sério. Não foi fácil. A maioria estranhou: uma mulher…

Tive ser dura com a equipe que tinha se formado ali. Falar: ‘a gente vai continuar e agora sou eu que estou aqui’. Os profissionais da velha guarda são machistas, o machismo não vem só dos clientes.

Meu trabalho foi no sentido de ser uma chef brasileira, nipo-brasileira, buscando trazer algo autêntico nos sabores, nas preparações e nas técnicas. Isso foi uma etapa. Depois eu me senti à vontade para brincar mais e colocar meus elementos, a minha história, as referências nipo-brasileiras.”

 

Japonês autêntico e local

“Talvez um dos pilares da culinária japonesa seja trabalhar frescor, sazonalidade e produtos locais. É por isso que a minha conserva tem maxixe e chuchu. É o que a gente tem aqui. Até porque, se você vai ao Japão, os sabores, as preparações, os pratos mudam de região para região, de ilha para ilha, de cidade para cidade. Cada local busca sua própria expressão de sabores. Tem que fazer sentido no entorno.

Desde o início nunca colocamos salmão no sushi bar. Sempre procurei trabalhar com os peixes da nossa costa.

Algumas coisas eu não consigo substituir. Shoyu, a maioria que uso ainda é importado. Kombu, a gente não tem aqui, é uma alga de águas frias, o melhor realmente vem do norte do Japão. Katsuobushi (conserva seca de bonito) também, e um ou outro temperinho. Mas talvez em dois terços do que eu utilizo tento privilegiar produção local. O arroz, de variedade japonesa, vem do sul do Brasil ou do Uruguai. O missô (pasta de soja fermentada), eu alterno alguns produtores artesanais do interior de São Paulo. No meu caldo, uso como base uma sardinha que é curada aqui em Cananeia, à moda japonesa. E uso muita verdura, legume, fruta… Uma das grandes contribuições da geração dos meus avós, quando veio ao Brasil, foi na agricultura, com todo o cinturão verde e essa variedade que a gente vê hoje em dia.

 

Pesar pelo desperdício

“O Japão já teve escassez séria de alimentos. Por conta disso houve as políticas de imigração e meus avós chegaram ao Brasil. Eles têm muito forte que tudo tem que ser você aproveitado. E tudo tem que ser agradecido como uma dádiva da natureza — ou de quem plantou, de quem colheu, de quem pescou, de quem produziu aquilo. Quando você está comendo e quando você prepara uma refeição, tudo isso está atrelado. Tanto que os japoneses começam e finalizam a refeição com uma expressão de agradecimento.

Mottainai é o pesar pelo desperdício. A gente é martelado desde pequeno: ‘Mottainai! Mottainai!’ Era a bronca da minha mãe quando a gente deixava comida no prato, quando jogava fora ou não aproveitava devidamente alguma coisa, como uma roupa. Na verdade isso não é só das coisas físicas. A gente também desperdiça energia, tempo.”

 

Hospitalidade

“Omotenashi é a hospitalidade japonesa. Existe o mínimo de de serviço eficiente e atencioso que você tem que ter. Mas o conceito japonês vai além: é fazer algo com o coração, fazer porque você se importa, por se colocar no lugar do outro e querer proporcionar uma experiência única. Isso você percebe em cerimônia do chá. Em cada xícara de chá que é servida, aquele encontro é único. Por mais que você tenha outra xícara, outro encontro com as mesmas pessoas, o momento, a energia, tudo muda. Cada interação é única.” 

 

Música e moda

“Eu toco piano desde os 5 anos de idade. Quando crio um prato ou cardápio ou uma refeição, penso muito em termos de uma orquestra ou de um concerto. De uma estrutura musical. Você tem a melodia, tem o fundo, tem os crescendos, tem um ritmo.

No visual, talvez eu pegue muita referência de moda: o volume,  textura, o caimento, a proporção.”

 

Marmita da princesa

“Quando a princesa Mako veio do Japão, estava com uma agenda apertada. Aí me pediram uma encomenda especial de obentôs (marmitas) para os dias em que ela estaria em trânsito e não teria tempo de parar em nenhum lugar.

Ela queria coisas leves e simples, e eu tentei colocar alguns sabores brasileiros, como o maxixe. Porque faz sentido para mim. Na minha cozinha, tem muita gente que veio do Nordeste, e eles me trouxeram o maxixe. Eu não conhecia e adorei. Fiquei pensando como conseguiria incorporar aquilo e veio essa receita do tsukemono (conserva). Minhas clientes japonesas foram as primeiras a ficar enlouquecidas. No Japão a cultura das conservas é muito forte, os mercados têm bancas especializadas nisso, com centenas de tipos.”

Tsukemono (conserva) de maxixe e cachaça do Aizomê

RECEITA

Tsukemono de maxixe e cachaça

Ingredientes

  • 10 maxixes bem verdinhos e novinhos
  • 1 colher de sobremesa de sal
  • 1 xícara de pinga
  • ½ xícara de vinagre de arroz
  • ½ xícara de shoyu (se tiver do shoyu claro melhor)
  • 1 pedaço com cerca de 3 cm de alga kombu (opcional)
  • 5 g de katsuobushi (peixe bonito seco) (opcional)

Modo de preparo

  1. Cortar os maxixes em quatro, salpicar com o sal e deixar descansar por pelo menos uma hora.
  2. Enquanto isso levar a aguardente ao fogo forte em uma panela. Cuidado, pois as chamas podem subir bastante ao flambar o álcool.
  3. Reduzir à metade, retirar do fogo e acrescentar o vinagre e o shoyu.
  4. Lavar os maxixes para retirar o excesso de sal e secar em papel toalha.
  5. Em um recipiente colocar o pedaço de alga kombu, os maxixes e acrescentar o líquido da panela. Adicionar o katsuobushi.
  6. Deixar marinando em geladeira por pelo menos 2 dias, virando os maxixes na mistura se necessário.
  7. Para servir basta retirar os maxixes do líquido e cortar em pedaços menores. O líquido da conserva pode ser reutilizado e dura de 10 a 15 dias.

Observação: A receita pode ser feita também com chuchu novinho. Se gostar, pode acrescentar algumas rodelinhas de pimenta dedo-de-moça.

As lagostas do STF e a comida da firma

as lagostas do STF e a comida da firma
Toda essa polêmica da compra de lagostas e vinhos premiados pelo Supremo Tribunal Federal me fez lembrar dos almoços da firma que já encarei ao longo da vida. Sem saudade. Porque infelizmente, ou felizmente, escolhi o jornalismo, profissão em que a gente é treinado para ter espírito crítico, mas não em relação ao que o patrão oferece (ou oferece parcialmente) no almoço.

No meu primeiro emprego, o décimo andar, onde ficava o quilo da empresa, era conhecido como péssimo andar. Havia também um bandejão pior que o péssimo, se não me engano no quinto andar. Sinceramente não recordo se a comida em si fazia jus ao apelido. Lembro melhor das noites de sexta-feira, em que os pescoções (horas extras para fechar parte da edição do jornal do fim de semana) eram movidos a fatias de pizza gordurosa servidas sobre laudas — folhas amareladas que abrigavam ácaros desde os tempos das máquinas de escrever.

No meu último emprego em redação, dia bom era dia de copa lombo. E até que era bom mesmo, porque porco pode ter tanto valor quanto lagosta. Duro era encarar filé de frango esturricado, massa molenga, gelatina (nada de romeu e julieta brûlée como no menu dos digníssimos ministros do STF), abacaxi azedo, azeite ruim… Havia quem levasse o próprio azeite no bolso para temperar a salada, mas nunca fui dessas.

Quase dei sorte em uma multinacional de internet. Contavam que os dias na redação, animada por um chefe circulando de patinete, começavam com um café da manhã farto e variado fornecido pela empresa. Mas cheguei logo depois do boom da internet, quando o banquete matinal já tinha se transformado em pão com manteiga, e só às sextas-feiras. De qualquer forma, bem que eu prezava o pão com manteiga, principalmente quando entrava às 7h da manhã para atualizar a homepage.  

Do refeitório de uma editora, dizia-se que tinha sido planejado especialmente para os funcionários ficarem pouco tempo, tamanho o zunido das conversas. Ressoa nos meus ouvidos até hoje o barulho do dia em que derrubei minha bandeja. Constrangimento maior, só sentar perto do dono, cercada por seus seguranças, em um dos raros dias em que ele descia para comer com a galera, criando uma zona de silêncio em torno da mesa.

Após o almoço, café, sempre. Mas só depois de passar pelo teste do funcionário do café, que anotava na cabeça a ordem dos pedidos e fuzilava com o olhar quem ousasse levantar as mãos para se fazer notar.

O café era ruim, claro. Mas melhor que o das máquinas nos andares. Este só dava para tomar em caso de desespero, ou seja, todos os dias. Uma das piores experiências gustativas da minha vida foi beber de um copo cheio de café frio e cinzas de cigarro, esquecido sobre uma mesa durante o fechamento.

Aliás, senti falta de especificações sobre café no tal edital milionário de refeições do STF. Vinho, só com quatro premiações, a lagosta deve vir com manteiga queimada, os legumes precisam ser tornados ou em noisettes, cachaças só se forem “envelhecidas em barris de madeira nobre por 1 (um) ou 3 (três) anos”… Quanto ao café, nem uma palavrinha. Será que os ministros tomam qualquer café?.

Pesquisei e li que, em 2017, o STF previa gastar R$ 140 mil com a compra de 17.500 pacotes de 500 gramas de grãos “100% arábica, sabor intenso, moagem média e torração moderada”. Ok. Pesquisei um pouco mais e cheguei à notícia, deste ano, de que, no STF, as xícaras costumam sumir, exigindo compras de louça cada vez mais frequentes. Copos d’água também têm sido controlados. Será que a mesma coisa acontecia no bandejão da firma?